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sábado, 23 de dezembro de 2023

"Saltburn": a sátira social afiada e provocante de Emerald Fennell (Bilíngue)

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Os melhores filmes considerados “extremos” são aqueles que usam seus aspectos mais explícitos como um véu que esconde uma tremenda história por trás. Um exemplo recente é o subestimado “Babilônia”, o épico de 3 horas de Damien Chazelle que se inicia com um elefante defecando monstruosamente e uma orgia, para depois desenvolver uma verdadeira odisseia sobre as mudanças que ocorreram na transição entre o cinema mudo e o falado. Em “Saltburn”, novo filme de Emerald Fennell disponível para streaming na Prime Video, cenas de devassidão e uma sequência envolvendo uma banheira que vai dar o que falar são simplesmente um chamariz para um suspense psicológico de primeira categoria que se disfarça de sátira social.

A primeira obra de Fennell após sua vitória no Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original por sua estreia “Bela Vingança”, “Saltburn” reforça a capacidade da diretora e roteirista de misturar perfeitamente o gênero do suspense com um senso de humor negro e satírico, algo que já era presente desde seu trabalho na segunda aclamada temporada da série de espionagem “Killing Eve”. Intensificando o tom da narrativa no decorrer da trama, a cineasta nunca falha em surpreender o espectador com seu novo filme, seja pelas voltas que o roteiro dá, pelas atuações dignas de prêmios de seu elenco, ou pela imersão completa na atmosfera britânica do início dos anos 2000.

(The best films considered “extreme” are those that use their most explicit aspects as a veil that conceals one hell of a story behind it. A recent example is the underrated “Babylon”, Damien Chazelle's 3-hour epic that opens with an elephant defecating monstruously and an orgy, only to then develop a true odyssey on the changes that occurred during the transition between silent films and talkies. In “Saltburn”, the new film by Emerald Fennell that's now streaming on Prime Video, scenes of debauchery and a sequence involving a bathtub that's bound to spark some discussion are merely a decoy for a first-rate psychological thriller that disguises itself as a social satire.

Fennell's first work after her Oscar win in the Best Original Screenplay category for her directorial debut “Promising Young Woman”, “Saltburn” reinforces the writer-director's ability to perfectly blend the thriller genre with a dark, satirical sense of humor, something that was already there ever since her work on the acclaimed second season of the espionage TV show “Killing Eve”. Intensifying the narrative's tone as the plot moves forward, the filmmaker never fails to surprise the viewer with her new film, whether it's because of the screenplay's twists and turns, the cast's award-worthy performances, or its complete immersion in the British atmosphere of the early 2000s.)



Trama

Saltburn” é um filme que tem seu impacto máximo no espectador com o mínimo de conhecimento prévio possível, então vou reduzir a sinopse às seguintes palavras: Oliver Quick (Barry Keoghan, “Os Banshees de Inisherin”) é um universitário de Oxford que se encontra obcecado pela família aristocrática de seu colega Felix (Jacob Elordi, “Euphoria”). Conforme os dois vão se conhecendo melhor, Felix convida Oliver para passar um verão inesquecível na mansão de sua família, um castelo imponente conhecido como Saltburn.

(Plot

Saltburn” is a film that leaves maximum impact on the viewer with as little prior knowledge as they can gather, so I'll reduce the plot synopsis to the following words: Oliver Quick (Barry Keoghan, “The Banshees of Inisherin”) is an Oxford undergraduate student who finds himself obsessed with the aristocratic family of his colleague Felix (Jacob Elordi, “Euphoria”). As the two get to know each other better, Felix invites Oliver to spend an unforgettable summer in his family's mansion, a majestic castle known as Saltburn.)



Suspense e humor negro no “Talentoso Ripley” do séc. XXI

O primeiro destaque a fazer sobre o roteiro de “Saltburn” é o quão bem ele mistura os gêneros geralmente opostos de suspense e comédia, reforçando o trabalho vencedor do Oscar de Fennell em “Bela Vingança”. O filme se inicia como uma sátira social, explorando as diferenças entre classes diferentes dentro do cenário universitário. A partir do momento em que Oliver entra em Saltburn, a trama vai lentamente se direcionando para uma vibe mais séria e intrigante, conseguindo reter o senso de humor através dos familiares ricos de Felix. De forma similar aos momentos-chave de suspense em sua estreia, a diretora e roteirista frequentemente pega o espectador desprevenido com as doses sombrias cada vez mais intensas espalhadas pelas partes cômicas, injetando no longa-metragem um altíssimo teor de entretenimento.

Outro destaque é a abordagem essencialmente psicológica no desenvolvimento de seu protagonista. O material promocional, focando nas partes mais provocantes, fez parecer que o filme seria um romance gay entre os personagens de Keoghan e Elordi. E, ao mesmo tempo que foi uma propaganda falsa para quem esperava algo parecido, foi uma maneira brilhante de manter a verdadeira mensagem do longa em segredo: é uma história sobre as distâncias que uma pessoa é capaz de percorrer para pertencer à um lugar que não é seu habitat natural. Fennell lida com essa trajetória através das partes provocantes supracitadas, que revelam novas camadas em seu personagem principal de maneira surpreendente e, muitas vezes, bizarra, resultando em sequências e reviravoltas de cair o queixo.

Muitos críticos compararam “Saltburn” à “O Talentoso Ripley”, romance icônico de Patricia Highsmith que ganhou uma impecável adaptação para o cinema em 1999 protagonizada por Matt Damon, e é uma comparação extremamente válida, pela abordagem psicológica de temas similares. Indo além do roteiro, Fennell faz questão de refletir a verdadeira mensagem do longa através da direção de fotografia sublime de Linus Sandgren, rodada na proporção de tela 1.33:1, com uma imagem mais estreita, para dar a impressão de alguém estar bisbilhotando nos eventos da trama pelas frestas de uma porta entreaberta. É uma escolha visual criativa por parte da diretora, que promete ser uma das vozes mais potentes da nossa geração.

(Suspense and dark humor in the 21st century's “Talented Mr. Ripley”

The first highlight to make on the screenplay for “Saltburn” is how well it mixes the generally opposing genres of thriller and comedy, reinforcing Fennell's Oscar-winning work in “Promising Young Woman”. The film starts off as a social satire, exploring the differences between different classes inside the college scenario. Starting from the moment Oliver enters Saltburn, the plot slowly directs itself towards a more serious, intriguing vibe, managing to retain the sense of humor through Felix's wealthy family members. In a similar way to the key moments of suspense in her debut, the writer-director frequently catches the viewer off guard with its dark doses that grow more and more intense, being sprinkled inbetween its more comical parts, injecting the feature with a high level of entertainment.

Another highlight is the essentially psychological approach to the development of its protagonist. The promotional material, focusing in the more provocative parts, made it look like the film was going to be a gay romance between Keoghan and Elordi's characters. And, at the same time it was false advertising for those that expected something like that, it was also a brilliant way of keeping the movie's true message a secret: it's a story about the lengths that a person can go in order to belong in a place that's not their natural habitat. Fennell deals with this trajectory through the aforementioned provocative parts, which reveal new layers to its main character in a surprising and, many times, bizarre way, resulting in jaw-dropping sequences and plot twists.

Many critics have compared “Saltburn” to “The Talented Mr. Ripley”, the iconic novel by Patricia Highsmith that was flawlessly adapted in 1999 into a movie starring Matt Damon, and it's an extremely valid comparison, because of both films' psychological approach towards similar themes. Going beyond the screenplay, Fennell makes a point to reflect the feature's true message through Linus Sandgren's sublime cinematography, shot in an aspect ratio of 1.33:1, with a more narrow image, in order to give the impression that someone is eavesdropping on the plot's events through the gap in an almost closed door. It's a creative visual choice in the director's behalf, as she promises to be one of the most potent voices in our generation.)



Muitos jovens, poucos veteranos (e isso é bom)

É interessante ver como o foco no elenco de “Saltburn” é no elenco mais jovem, mesmo tendo nomes veteranos como Rosamund Pike, Richard E. Grant e Carey Mulligan, mas é inegável que foi a escolha criativa certa a se fazer, brilhando um holofote para uma geração mais nova e tão talentosa quanto a anterior. Desde a primeira vez em que vi Barry Keoghan em tela, em “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, ele causou uma impressão enorme em mim, que somente foi intensificada pelo seu papel indicado ao Oscar em “Os Banshees de Inisherin”. Aqui, ele testa e, muitas vezes, ultrapassa seus limites como ator, transitando entre inocência e frieza de maneira sensacional. Não é à toa que ele foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Ator – Drama por seu papel aqui. Keoghan tem uma química palpável com o ótimo Jacob Elordi, cujo personagem consegue emanar uma atitude despreocupada contagiante, sendo mais parecido com o protagonista do que sua própria família.

Como dois familiares de Felix na mesma faixa etária da dupla, temos performances roubadoras de cena de Alison Oliver e Archie Madekwe. Os personagens deles servem como um constante lembrete para o protagonista de seu não pertencimento no círculo familiar de Saltburn, e as cenas onde Keoghan confronta tanto Oliver quanto Madekwe são salpicadas por um sarcasmo e cinismo capazes de fazer o queixo do espectador cair. A troca de farpas com o primo rico acostumado de Madekwe são particularmente divertidas de assistir, sendo o mais próximo de uma relação protagonista-antagonista que o roteiro estabelece.

No lado dos veteranos, temos o trio supracitado composto por Rosamund Pike, Richard E. Grant e Carey Mulligan, através dos quais Fennell expõe o egoísmo e a antipatia presentes nas classes aristocráticas. Pike e Grant, em particular, são alívios cômicos eficientes ao longo do tempo de duração de 2 horas e 15 minutos como os pais de Felix, mas conseguem mostrar outras camadas em seus personagens, em especial perto da conclusão do filme, evitando que eles sejam unidimensionais, o que é muito bem-vindo. Gostaria de ter visto mais da Carey Mulligan, mas já pelo seu curto tempo de tela, ela causa uma impressão bem forte, mesmo com sua personagem sendo drasticamente diferente da que interpretou no filme “Maestro”, de Bradley Cooper, no bom sentido.

(Many youngsters, few veterans (and that's very good)

It's interesting to see how the focus in the cast of “Saltburn” is on the younger cast, even with seasoned names like Rosamund Pike, Richard E. Grant and Carey Mulligan, but it's undeniable that that was the right creative choice to make, shining a spotlight on a newer generation that's as talented as the previous one. Ever since the first time I saw Barry Keoghan onscreen, in “The Killing of a Sacred Deer”, he made an enormous impression on me, which just became more intense with his Oscar-nominated turn in “The Banshees of Inisherin”. Here, he tests and, often, surpasses his limits as an actor, traveling between innocence and coldness in a sensational way. It's not surprising that he got nominated for the Golden Globe for Best Actor in a Leading Role – Drama for his role here. Keoghan has a palpable chemistry with the great Jacob Elordi, whose character manages to exhale a contagious careless attitude, acting more like the protagonist than his own family.

As two of Felix's relatives in the same age as the main duo, we have scene-stealing performances by Alison Oliver and Archie Madekwe. Their characters serve as a constant reminder of the protagonist's not belonging in Saltburn's family circle, and the scenes where Keoghan confronts both Oliver and Madekwe are drizzled with a dose of sarcasm and cynicism that are fully able to make the viewer's jaw drop in awe. His squabbling with Madekwe's rich accostumed cousin is particularly fun to watch, being the closest the script gets to a protagonist-antagonist dynamic.

In the veterans' side, we have the aforementioned trio composed by Rosamund Pike, Richard E. Grant and Carey Mulligan, through which Fennell exposes the selfishness and antipathy in aristocratic classes. Pike and Grant, in particular, are efficient comic reliefs throughout the 2-hour-and-15-minute runtime as Felix's parents, but they manage to show other layers to their characters, especially towards the plot's conclusion, avoiding a position for them as one-dimensional characters, which is a very welcome decision. I wish I could've seen more of Carey Mulligan, but through her short screentime, she causes a very strong impression, even if her character here is wildly different from her turn in Bradley Cooper's “Maestro”, in a good way.)



A atmosfera perfeita

A escolha da ambientação no início dos anos 2000 foi outro grande acerto para “Saltburn”, menos pela nostalgia, que também é bem presente, e mais pelo fato de não ter sido uma época essencialmente digital. Por ser uma década onde a tecnologia que possibilita a rapidez na transmissão de informação ainda não havia alcançado a abrangência e o imediatismo dos dias atuais, isso permite com que Emerald Fennell elabore uma trama mais “analógica”, no melhor sentido possível, limitando a ação no roteiro aos arredores das ambientações. Além disso, é muito legal ver os personagens se divertindo com qualquer coisa exceto seus dispositivos móveis, seja andando de Jeep ao som de The Killers ou revezando na leitura do último livro de “Harry Potter”.

Outro destaque fica com a direção de arte, que faz um ótimo trabalho em estabelecer um contraste visual entre a identidade festeira e despreocupada da juventude e a classe e a aristocracia dos adultos na sociedade britânica. O castelo de Saltburn, localizado ao leste do centro da Inglaterra, parece ser um personagem em si, com toda a sua grandiosidade e infinidade de cômodos. É tudo muito cuidadosamente decorado, para refletir a sofisticação inerente de seus moradores. Porém, é um lugar igualmente atraente quando invadido pelas cores neon e pop que caracterizam os personagens mais jovens, com a direção de fotografia de Linus Sandgren fazendo uso de uma paleta vibrante e colorida.

Como a cereja no bolo, temos a trilha sonora, que funciona tanto no quesito instrumental, através do trabalho incrível de Anthony Willis, quanto no aspecto diegético, onde somos presenteados com hits de bandas e cantores do movimento Britpop, popularizado na época retratada. Nas faixas originais de Willis, o caráter psicológico da trama e o prestígio da ambientação em Oxford são refletidas por meio de uma presença forte de orquestras, que tornam a atmosfera ainda mais intensa. Entre os hits do início dos anos 2000, temos artistas como The Cheeky Girls, Arcade Fire, Bloc Party, Benny Benassi, Arctic Monkeys, MGMT, Blur e Sophie Ellis-Bextor, com algumas das canções sendo o foco de certas cenas-chave, aumentando o impacto delas como resultado.

(The perfect atmosphere

The choice of setting in the early 2000s was another home run for “Saltburn”, less for its nostalgia, which is also pretty present, but more for the fact that it wasn't an essentially digital time. Because it's a decade where technology that allows fastness in transmitting information hadn't yet reached today's wide range and immediateness, it allows Emerald Fennell to elaborate a more “analog” plot, in the best way possible, limiting the screenplay's action to the setting's surroundings. Besides, it's really nice to see the characters having fun with anything but their mobile devices, whether it's riding a Jeep listening to the Killers, or taking turns reading the last “Harry Potter” book.

Another highlight stays with the production design, that does a great job in establishing a visual contrast between the youth's partying and careless identity with the adults' class and aristocracy in British society. The Saltburn castle, located in the East Midlands of England, feels like a character in itself, with all its greatness and infinity of rooms. It's all very carefully decorated, in order to reflect its inhabitants' inherent sophistication. However, it ends up as an equally appealing place when it's invaded by the neon, pop colors that symbolize the younger characters, with Linus Sandgren's cinematography using a vibrant, colorful palette.

As the cherry on top, we have the music, which works both as a score, through Anthony Willis's incredible work, and as a soundtrack, where we're gifted with hits by bands and singers from the Britpop movement, which was made popular in the film's timeframe. In Willis's original tracks, the plot's psychological vein and the prestige of Oxford as a setting are reflected through a strong presence of orchestras, which make the atmosphere all the more intense. Among the hits of the early 2000s, we have music by artists such as The Cheeky Girls, Arcade Fire, Bloc Party, Benny Benassi, Arctic Monkeys, MGMT, Blur and Sophie Ellis-Bextor, with some of the songs playing a major part in some of the film's key scenes, enhancing their impact as a result.)



Resumindo, “Saltburn” reforça o incrível talento de Emerald Fennell como roteirista e diretora, graças à uma trama que perfeitamente mistura suspense e humor negro, um elenco maravilhoso que entrega atuações dignas de prêmios, e uma imersão completa na atmosfera da Inglaterra do início dos anos 2000. Como uma das vozes mais promissoras da nossa geração, a cineasta faz uma série de acertos criativos consecutivos que transformam essa obra provocante e essencialmente satírica em um dos melhores filmes de 2023.

Nota: 10 de 10!!

É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Até a próxima,

João Pedro

(In a nutshell, “Saltburn” reinforces Emerald Fennell's incredible talent as a writer and director, thanks to a plot that perfectly blends suspense and dark humor, a wonderful cast that delivers award-worthy performances, and a full-on immersion into the atmosphere of England in the early 2000s. As one of the most promising voices in our generation, the filmmaker makes a series of consecutive creative home runs that transform this provocative and essentially satirical piece of work into one of the best films of 2023.

I give it a 10 out of 10!!

That's it, guys! I hope you liked it! See you next time,

João Pedro)


domingo, 1 de outubro de 2023

Curtas de Wes Anderson na Netflix: tamanho menor, mesma excentricidade (Bilíngue)

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Poucos diretores atualmente possuem um estilo de fazer cinema tão singular e facilmente identificável como o norte-americano Wes Anderson. Ao longo de sua carreira, através de filmes como “O Grande Hotel Budapeste” e “Os Excêntricos Tenenbaums”, o cineasta estabeleceu uma série de recursos visuais e narrativos que se tornaram recorrentes em sua filmografia, inspirando tendências nas redes sociais e paródias simulando sua estética inconfundível, composta de enquadramentos simétricos, paletas de cor em tons pastel, e ambientes detalhados e cuidadosamente decorados. Então, com esta fama entre os cinéfilos, era só questão de tempo até que Wes adentrasse no cenário dos serviços de streaming. E, com seus quatro curtas lançados na Netflix a partir da última quarta-feira (27 de setembro), Anderson realiza seu trabalho mais acessível desde “O Grande Hotel Budapeste”, revisitando a escrita do britânico Roald Dahl de maneira ousada, teatral e inventiva, com tempos de duração de 20 a 40 minutos.

14 anos após sua adaptação animada em stop-motion e indicada ao Oscar de “O Fantástico Sr. Raposo”, obra infantil de Dahl, Wes foi contratado pela gigante do streaming para comandar quatro curtas-metragens baseados em contos mais adultos do autor: “A Incrível História de Henry Sugar”, “O Cisne”, “O Caçador de Ratos” e “Veneno”. Contando com uma trupe mais compacta de atores, em comparação com os grandes elencos costumeiros do diretor (em seu longa mais recente, “Asteroid City”, também lançado em 2023, nomes como Tom Hanks, Scarlett Johansson e Margot Robbie marcaram presença), Anderson realiza adaptações extremamente fiéis ao material original enquanto mantém seu estilo inconfundível intacto, servindo como uma porta de entrada perfeita para aqueles que desejam explorar sua filmografia mais a fundo.

(Very few directors nowadays have a filmmaking style as singular and easily identifiable as American-born Wes Anderson. Throughout his career, through films such as “The Grand Budapest Hotel” and “The Royal Tenenbaums”, the filmmaker established a series of visual and narrative resources that became recurring features in his filmography, inspiring social media trends and parodies simulating his unmistakable aesthetic, composed by symmetrical framing, pastel-coloured palettes, and detailed, carefully decorated environments. So, with this fame amongst cinephiles, it was only a matter of time until Wes entered the streaming service scenario. And, with his four short films released on Netflix from last Wednesday (Sep. 27th), Anderson makes his most accessible work since “The Grand Budapest Hotel”, revisiting the writings of British author Roald Dahl in a bold, theatrical and inventive way, with runtimes that vary from 20 to 40 minutes.

14 years after his stop-motion animated, Oscar-nominated adaptation of “Fantastic Mr. Fox”, a children's work by Dahl, Wes was hired by the streaming giant to helm four short films based on more mature stories from the author: “The Wonderful Story of Henry Sugar”, “The Swan”, “The Rat Catcher” and “Poison”. Relying on a more compact troupe of actors, in comparison with the director's usual ensemble casts (in his most recent film, “Asteroid City”, also released in 2023, names like Tom Hanks, Scarlett Johansson and Margot Robbie were present), Anderson accomplishes extremely faithful adaptations to the original material while maintains his unmistakable style intact, serving as a perfect starting point for those who wish to explore his filmography a little deeper.)



Trama

Ao contrário de antologias, compostas por histórias aparentemente independentes conectadas por um fio condutor em comum, gênero que o próprio Wes experimentou com “A Crônica Francesa” (2021), os quatro curtas disponíveis na Netflix são promovidos como pequenos filmes completamente separados um do outro, não possuindo nenhuma conexão narrativa. O carro-chefe da coleção, “A Incrível História de Henry Sugar”, acompanha um homem ambicioso que se dispõe a aprender técnicas extraordinárias para ganhar dinheiro em jogos de azar. “O Cisne”, inspirado em um fato real, segue um jovem prodígio que é atormentado por dois valentões.

O Caçador de Ratos”, parte de uma coleção de quatro histórias de Dahl chamada “Claud's Dog”, segue um exterminador profissional de roedores, que expõe suas técnicas pouco convencionais para capturar suas presas ao dono de um posto de gasolina e a um repórter. Por fim, “Veneno”, o único conto não ambientado no Reino Unido, acompanha um jovem militar britânico que, ao chegar em seu bangalô na Índia, encontra seu colega de quarto paralisado na cama, alegando que uma cobra venenosa está sob as cobertas.

(Plot

Unlike anthology films, composed by apparently independent stories connected by a common thread, a genre that Wes himself experimented with 2021's “The French Dispatch”, the four short films available on Netflix are promoted as little films that are completely separate from each other, not possessing any narrative connection. The main one in the collection, “The Wonderful Story of Henry Sugar”, follows an ambitious man who learns extraordinary abilities to make money playing cards. “The Swan”, inspired by a true story, consists of a prodigious young man who is tormented by two bullies.

The Rat Catcher”, a standalone tale which is part of a four-story collection by Dahl named “Claud's Dog”, follows a professional rodent exterminator, who exposes his unconventional techniques to capture his prey to the owner of a gas station and a reporter. Lastly, “Poison”, the only story not set in the United Kingdom, accompanies a young British soldier who, by arriving at his bungalow in India, finds his roommate paralyzed in bed, claiming that a venomous snake is under his covers.)



Fidelidade ao extremo

É difícil chamar os quatro curtas-metragens de Wes Anderson na Netflix de “adaptações”, porque, ao contrário de muitas obras inspiradas em livros que omitem partes e segmentos de seus materiais originais, o diretor faz a escolha inusitada de se ater às palavras exatas escritas por Roald Dahl. Ou seja, todas as narrações, descrições de cenários e diálogos presentes nos curtas fazem parte do texto integral dos contos nos quais eles foram baseados. Isto não só permite que os pequenos filmes sejam extremamente fiéis às histórias adaptadas, como também desperta uma espécie de companheirismo entre a escrita de Dahl e o cinema de Anderson, devido ao caráter excêntrico que os dois compartilham, especialmente através dos personagens. O personagem-título de “Henry Sugar”, por exemplo, não é tão distante, em termos de personalidade, do concierge Gustave H., de “O Grande Hotel Budapeste”.

Outro detalhe que é importante ressaltar é que o meio cinematográfico não é o único utilizado pelo diretor para adaptar os contos de Dahl. Vários recursos do teatro são amplamente replicados aqui: a recorrente quebra da quarta parede pelos personagens principais, que se direcionam ao público nas partes de narração; a aparição rápida de técnicos nos bastidores, que aplicam maquiagem nos atores em tempo real e providenciam os adereços; a mudança quase instantânea de cenários, simbolizando a troca de cenas; a iluminação, que muitas vezes foca, como que um holofote, no olhar dos personagens. Essa proximidade com a maneira teatral de contar histórias faz com que os curtas sejam o trabalho mais experimental de Wes até o momento, com o cineasta encontrando maneiras criativas e inventivas de homenagear o legado deixado pelo autor britânico, que faleceu em 1990.

A abordagem extremamente fiel de Anderson é especialmente ousada, nos dias de hoje, pela recente revisão e reedição que as obras infantis de Roald Dahl sofreram no Reino Unido, este ano. Com o autor sendo detentor de uma linguagem essencialmente ácida e sarcástica, mesmo para o público infantil, a editora britânica de clássicos como “Matilda”, “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “James e o Pêssego Gigante” e “A Convenção das Bruxas” ou removeu ou modificou radicalmente palavras e sentenças consideradas “ofensivas” ou “problemáticas” para a atualidade. A decisão foi recebida com críticas de autores como Margaret Atwood e Salman Rushdie, condenando a revisão como uma espécie de censura. O fato de que Wes fez questão de adaptar a linguagem original de Dahl faz com que os curtas sejam a resposta perfeita para toda esta controvérsia, mostrando reverência, honestidade e, principalmente, respeito às escritas que cativaram (e ainda cativam) gerações de leitores.

(Faithfulness to the extreme

It's hard to call Wes Anderson's four Netflix shorts “adaptations”, because, unlike many works inspired by books that omit parts and segments from their original material, the director makes an unexpected choice of translating the exact same words written by Roald Dahl to the screen. Meaning that, every narration, description of setting and line of dialogue in these shorts is directly taken from the text in which they were based on. That not only allows these small films to be extremely faithful to the adapted stories, as it also awakens some sort of fellowship between Dahl's writing and Anderson's filmmaking, due to the quirky, eccentric tone they share, especially through their characters. The title character of “Henry Sugar”, for example, isn't that far away, when it comes to personality, from “The Grand Budapest Hotel”'s concierge Gustave H.

Another detail that's important to reinforce is that the cinematic medium isn't the only one the director uses to adapt Dahl's tales. Several resources from the theatre are widely replicated here: the recurring fourth-wall break, where the main character speaks to the audience through narration; quick appearances by backstage technicians, who apply make-up on the actors in real time and provide them with props; the almost instant change in settings, as a symbol of a change of scenery; the lighting, that focuses extensively, almost like a spotlight, on the characters' gaze. This proximity with the theatrical way of storytelling makes the shorts stand out as Wes's most experimental work yet, as the filmmaker finds creative and inventive ways to pay homage to the legacy left by the British author, who passed away in 1990.

Anderson's extremely faithful approach is especially bold, nowadays, due to the recent revision and re-editing that Roald Dahl's work for children suffered in the United Kingdom, earlier this year. With the author donning an essentially acid and sarcastic language, even when it comes to children's books, the British publishing company of classics such as “Matilda”, “Charlie and the Chocolate Factory”, “James and the Giant Peach” and “The Witches” either removed or radically changed words and sentences that could be considered “offensive” or “problematic” for today's audience. The decision was met with backlash from authors like Margaret Atwood and Salman Rushdie, who condemned the revision as an act of censorship. The fact that Wes stood his ground using Dahl's original language allows these shorts to be the perfect answer to all this controversy, as it displays reverence, honesty, and, mainly, respect to the writings that won over (and still win over) generations of readers.)



Papéis diferentes, mesmo elenco

Tecnicamente, Wes Anderson dispõe de apenas seis atores que interpretam papéis diferentes ao longo dos quatro curtas: Benedict Cumberbatch, Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Dev Patel, Rupert Friend e Richard Ayoade. Felizmente, todos têm seu momento para brilhar aqui. Cumberbatch e Kingsley têm seus melhores desempenhos em “A Incrível História de Henry Sugar”, com o ator de “Doutor Estranho” em especial fazendo uso de um padrão de fala essencialmente acelerado, lembrando muito o seu trabalho em “Sherlock”. Friend, por contrapartida, domina “O Cisne”, sendo o único personagem e narrador da trama, modificando a voz e os trejeitos físicos de uma maneira muito divertida para adequar todas as figuras que ele interpreta ao longo dos concisos 17 minutos de duração.

Fiennes, em sua segunda colaboração com Anderson após “O Grande Hotel Budapeste”, interpreta tanto Roald Dahl, em uma escalação perfeita, aparecendo nos quatro curtas como narrador, quanto o personagem-título de “O Caçador de Ratos”, de longe uma das figuras mais excêntricas e aterrorizantes a povoar tanto um conto de Dahl quanto um filme de Wes Anderson. Patel e Ayoade, novatos na família cinematográfica do diretor, são um verdadeiro deleite. Em “Veneno”, Patel se destaca pela jovialidade, dedicação e rapidez demonstrada nos diálogos. Já Ayoade possui um papel mais central em “O Caçador de Ratos”, como um exemplo perfeito do senso de humor inexpressivo que é quase onipresente no cinema de Wes, arrancando boas risadas.

(Different roles, same cast

Technically, Wes Anderson relies on only six actors who portray different roles throughout the four short films: Benedict Cumberbatch, Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Dev Patel, Rupert Friend and Richard Ayoade. Fortunately, they all have their moments to shine here. Cumberbatch and Kingsley have their best development in “The Wonderful Story of Henry Sugar”, with the “Doctor Strange” actor in particular making use of an essentially accelerated speech pattern, which calls back to his incredible work in “Sherlock”. Friend, on the other hand, dominates the screen in “The Swan”, as the plot's only on-screen character and narrator, modifying his voice and body language in a very fun way to adequate all the figures he plays throughout the concise 17-minute runtime.

Fiennes, in his second collaboration with Anderson after “The Grand Budapest Hotel”, plays both Roald Dahl, in a perfect casting, appearing on all four shorts as their narrator, and the title character of “The Rat Catcher”, easily one of the most eccentric and terrifying figures to ever appear on either a Dahl story or a Wes Anderson film. Patel and Ayoade, new arrivals on the director's cinematic family, are a true delight. In “Poison”, Patel stands out for his youthfulness, dedication and fast-paced dialogue delivery. Ayoade has a more central role in “The Rat Catcher”, being the perfect example of the deadpan sense of humor that's almost omnipresent in Wes's cinema, getting good laughs out of the viewer.)



Estilo intacto, com alguns complementos (e ressalvas)

Tudo que alguém poderia esperar visualmente de um filme de Wes Anderson se encontra 100% presente nestes quatro curtas. Enquadramentos simétricos, experimentos com vários formatos de tela, paletas de cor em tons pastéis, ambientações cuidadosamente decoradas, animação em stop-motion, o uso assertivo de iluminação para criar um contraste entre luz e sombra. Anderson abraça completamente o estilo que ele mesmo construiu ao longo de sua carreira com resultados maravilhosos, reforçando o caráter artístico de sua estética e sua visão como diretor como uma das mais singulares e facilmente identificáveis da nossa geração.

Algo admirável que a direção de arte chefiada pelo colaborador recorrente Adam Stockhausen faz aqui é a tentativa de, pela abordagem teatral, fazer o que é fantástico (ou seja, fora da realidade) parecer minimalista. Um exemplo criativo disto é um segmento de “Henry Sugar”, onde o personagem-título, após ter aprendido as técnicas extraordinárias supracitadas, começa a meditar, com a composição visual da cena fazendo parecer que Sugar está flutuando. Porém, através das mudanças de cenário em tempo real, é possível ver que o ator está sentado em um banco cuja pintura se camufla com o fundo da ambientação, criando a ilusão que Dahl transmite no conto.

Porém, um curta em especial peca por não ter alcançado o potencial completo que poderia colocá-lo no mesmo patamar dos outros três, que é “O Caçador de Ratos”. Embora seja uma boa adaptação do conto de Dahl, ao meu ver, Anderson desperdiçou a oportunidade de fazer com que o curta-metragem fosse inteiramente animado em stop-motion, o que iria misturar perfeitamente o cartunesco da história com o realismo dos fantoches. Um exemplo claro disso é o retrato do próprio personagem-título, que é descrito pelo autor como um rato humano, mesclando as feições particulares do rato com a personalidade selvagem do exterminador. Fiennes interpreta o personagem com dedicação, mas o caráter violento, inesperado e aterrorizante da história original perde um pouco o seu brilho na adaptação, pela abordagem majoritariamente em live-action, na minha opinião.

(Intact style, with a few complements (and setbacks)

Everything that someone would come to visually expect of a Wes Anderson film is 100% present in these four shorts. Symmetrical framing, experiments with different aspect ratios, pastel color palettes, carefully decorated settings, stop-motion animation, the assertive use of lighting to create a contrast between light and shadow. Anderson fully embraces the style he built for himself throughout his career with wonderful results, reinforcing the artistic vein in his aesthetic and his filmmaking vision as one of the most singular and easily identifiable ones in our generation, currently.

Something admirable that the production design led by recurring collaborator Adam Stockhausen does here is the attempt of, because of its theatrical approach, making the fantastic (meaning, that which is not real) seem minimalistic. A creative example of this is a segment from “Henry Sugar”, where the title character, after learning the aforementioned extraordinary abilities, starts to meditate, with the scene's visual composition making it look like Sugar is levitating. However, through the real-time change of scenarios, it's possible to see that the actor is sitting on a stool where the painting blends in with the background of the setting, thus creating the illusion Dahl conveys in the story.

However, one particular short does not reach the full potential that could've put it on the same level as the other three, which is “The Rat Catcher”. Although it's a good adaptation of Dahl's story, in my opinion, Anderson wasted the opportunity of animating the entire short in stop-motion, which would perfectly blend the story's cartoonish parts with the puppets' realism. A clear example of that is the portrayal of the title character, who the author describes as a human rat, mixing the rat's particular features with the exterminator's wild personality. Fiennes plays the character with gusto, but the violent, unexpected and terrifying tone of the original story loses some of its sparkle in the adaptation, mostly because of its live-action approach, to me.)



Resumindo, os quatro curtas de Wes Anderson feitos para a Netflix encontram o diretor em uma abordagem narrativamente ousada e visualmente inventiva dos contos excêntricos de Roald Dahl, sendo o trabalho mais acessível do cineasta desde “O Grande Hotel Budapeste”, de 2014. Usando recursos do teatro para traduzir fielmente a linguagem de Dahl para a tela, os curtas também são o projeto mais experimental de Anderson até o momento, contando com atuações completamente dedicadas de uma trupe de seis atores para que as adaptações surtam o maior efeito possível no espectador.

A Incrível História de Henry Sugar: 10 de 10!

O Cisne: 10 de 10!

O Caçador de Ratos: 8,5 de 10!

Veneno: 10 de 10!

É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Até a próxima,

João Pedro

(In a nutshell, Wes Anderson's four short films made for Netflix find the director in a narratively bold and visually inventive approach to Roald Dahl's eccentric stories, being the filmmaker's most accessible work since 2014's “The Grand Budapest Hotel”. Using theatrical resources to faithfully translate Dahl's language to the screen, the shorts are also Anderson's most experimental project to date, relying on fully committed performances from a six-actor troupe to leave the strongest effect possible on audiences.

The Wonderful Story of Henry Sugar: 10 out of 10!

The Swan: 10 out of 10!

The Rat Catcher: 8,5 out of 10!

Poison: 10 out of 10!

That's it, guys! I hope you liked it! See you next time,

João Pedro)


sábado, 9 de setembro de 2023

"Retratos Fantasmas": um relato íntimo e universal sobre história, cinema e memória (Bilíngue)

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    Na indústria cinematográfica, o que não falta são homenagens de seus cineastas à sétima arte, destacando a criatividade, o trabalho esforçado, e muitas vezes a dificuldade de realizar um filme. Como exemplos relativamente atuais, temos obras como “A Invenção de Hugo Cabret”, de Martin Scorsese; “Era uma Vez em... Hollywood”, de Quentin Tarantino; e “Os Fabelmans”, de Steven Spielberg. Alguns destes tributos não somente prestam respeito ao cinema em si, mas também à experiência de assisti-lo em uma sala escura com uma tela enorme, como o clássico “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore; e os subestimados “Cine Majestic”, de Frank Darabont, e “Império da Luz”, de Sam Mendes. Graças à uma das estreias mais recentes nos cinemas do país, podemos acrescentar mais uma obra a esta lista: o documentário brasileiro “Retratos Fantasmas”, realizado por Kleber Mendonça Filho.

    Pré-selecionado para concorrer à uma vaga para representar o Brasil em mais uma corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional, a mais nova obra do diretor de clássicos contemporâneos do cinema nacional, como “O Som Ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”, encontra seu realizador em seu momento mais pessoal, explorando sua paixão crescente pela sétima arte e seu apreço enorme pelos cinemas de rua do centro de Recife, sua cidade natal. Há três razões em particular às quais é possível atribuir a excelente transmissão da mensagem contida dentro de “Retratos Fantasmas”: a abordagem do fazer cinematográfico como algo íntimo para o cineasta; a urbanização como um ponto chave para o desaparecimento dos cinemas de rua; e a resistência das memórias afetivas das pessoas que frequentam estes estabelecimentos como a razão de alguns ainda permanecerem em pé.

     O que Kleber Mendonça Filho faz aqui é particularmente incrível, porque ao falar de Recife, ele acaba falando de toda cidade do Brasil cujo centro financeiro foi deslocado ao longo do tempo. Por isso, a presente crítica, além de analisar o trabalho em questão, fará uma comparação paralela entre tudo o que foi exposto no documentário e o que acontece em Goiânia (de onde a crítica está sendo escrita), em relação à sua urbanização e ao desaparecimento gradual de seus cinemas de rua, com o objetivo de comprovar a universalidade na abordagem escolhida pelo diretor.

(In the film industry, homages from its filmmakers to their art come aplenty, highlighting the creativity, the hard work, and many times the difficulties faced in making a film. As relatively current examples, we have works like Martin Scorsese's “Hugo”; Quentin Tarantino's “Once Upon a Time in... Hollywood”; and Steven Spielberg's “The Fabelmans”. Some of these tributes not only pay respect to cinema itself, but also to the experience of seeing it on a dark room with a huge screen, such as Giuseppe Tornatore's classic “Cinema Paradiso”; and underrated gems such as Frank Darabont's “The Majestic”, and Sam Mendes's “Empire of Light”. Thanks to one of the most recent releases in Brazil's movie theaters, we can add one more work to that list: the documentary “Pictures of Ghosts”, directed by Kleber Mendonça Filho.

Pre-selected to apply for a slot to represent Brazil in yet another race for the Oscar for Best International Feature Film, the newest work by the director responsible for contemporary classics of Brazilian cinema, such as “Neighboring Sounds”, “Aquarius” and “Bacurau”, finds its filmmaker in his most personal moment, exploring his growing passion for the art of cinema and his enormous appreciation towards the street movie theaters in the downtown of Recife, his hometown. There are three reasons to which it's possible to atribute the excellent conveying of the message contained within “Pictures of Ghosts”: its approach to filmmaking as something intimate to its subject; the urbanization as a key factor towards the disappearance of street cinemas; and the resistance of memories from the people who attend to these establishments as the reason why some of them still stand.

What Kleber Mendonça Filho does here is particularly amazing, because by talking about Recife, he ends up talking about every city in Brazil where its financial center changed throughout history. Because of that, this review, besides analyzing the work displayed here, will make a parallel comparison between everything that was exposed in the documentary and what happens in Goiânia (from where the review is being written), when it comes to its process of urbanization and the gradual disappearance of its street movie theaters, with the objective of proving the universality in the approach the director chose.)



O cinema como algo íntimo e pessoal

    Um dos acertos de “Retratos Fantasmas” é a sua subdivisão em três partes, partindo de um ponto mais particular e expandindo gradualmente para o universal. A primeira é concentrada na história do próprio Kleber Mendonça Filho, que narra o documentário por completo. Tendo como pano de fundo o seu crescimento em um apartamento no bairro de Setúbal, em Recife, o cineasta discorre sobre sua mãe e destaca a influência dela no desejo dele de fazer cinema. Esta primeira parte parece ser um recado para todo jovem brasileiro ou não que almeja seguir a mesma carreira, pois mostra que grande parte do trabalho inicial do diretor foi rodado dentro deste apartamento, inclusive o seu primeiro longa-metragem, “O Som ao Redor”, lançado em 2012. A montagem faz um trabalho ágil de transitar entre fotos e filmagens do arquivo pessoal do realizador e fragmentos de suas obras, e com isso, permite que o espectador tenha uma proximidade mais íntima do narrador.

    De fato, esta proximidade pode ser tamanha, que pode beirar à identificação com aquilo que está sendo mostrado em tela. Este crítico que vos escreve, em particular, se sentiu bastante visto na trajetória de Kleber Mendonça Filho, e aqui, a crítica fará um parêntese para transitar para a primeira pessoa. Durante o ápice da pandemia, em meados de 2020, eu, como milhões de pessoas ao redor do mundo, me vi dominado pela ansiedade em relação ao COVID-19, em especial sobre o que aconteceria se uma das pessoas do meu círculo familiar mais próximo contraísse a doença. Deste ponto de vista, me veio a ideia de escrever um roteiro que conseguisse transmitir essa angústia para a tela. O resultado foi um documento de 37 páginas, cujas cenas são inteiramente ambientadas dentro da minha casa. Objetos que tenho serviram como adereços para uma possível direção de arte, partes específicas dos cômodos são referenciadas nos mínimos detalhes. Mesmo que eu já tenha iniciado outros trabalhos de ficção, este roteiro não filmado, embora amador, continua sendo meu trabalho mais pessoal até o momento, e eu não pude evitar a identificação com o diretor em relação à isso.

(Filmmaking as something intimate and personal

One of the things that “Pictures of Ghosts” gets right is its division into three parts, going from a more particular point of view and gradually expanding towards an universal one. The first part is focused on the story of Kleber Mendonça Filho himself, who also narrates the documentary in its entirety. Having his coming-of-age in an apartment in the neighborhood of Setúbal, in Recife, as a background, the filmmaker tells us about his mother and highlights her influence in his desire to make movies. This first part seems to be a message to every young person, Brazilian or not, who wishes to follow the same footsteps, as it shows that a great part of the director's initial work was filmed inside this apartment, including his first feature film, “Neighboring Sounds”, released in 2012. The editing does an agile job in shifting through photos and footage from the author's personal archive and fragments of his works, and with that, it allows the viewer to have a more intimate closeness with the narrator.

Indeed, that closeness can reach such high levels, that it can also generate identification to what's being shown onscreen. This particular critic felt quite seen through Kleber Mendonça Filho's trajectory, and here, the review will quickly switch to the first person. During the peak of the pandemic, throughout 2020, I, just like millions of people around the world, saw myself dominated by anxiety in regards to COVID-19, especially about what would happen if one of the people in my closest family circle contracted it. From that point of view, an idea came to me of writing a script that managed to convey that anguish to the screen. The result was a 37-page document, where the scenes are entirely set in my house. Objects that I have served as props for production design, specific parts of the rooms are described to the tiniest detail. Even though I've already moved on to other fiction projects, this unfilmed script, albeit amateurish, remains being my most personal work to date, and I couldn't help but relate to the director because of it.)



A urbanização e os cinemas de rua

    Outro assunto colocado em pauta, em sua maioria, na segunda parte de “Retratos Fantasmas” é a urbanização e seu impacto no centro de Recife e, em especial, nos cinemas de rua. Kleber serve como nosso guia aos estabelecimentos que marcaram sua formação como cinéfilo, muitos dos quais já se encontram de portas fechadas nos dias de hoje. Mergulhando na história de cada cinema abordado, o próprio diretor descobre coisas que ele mesmo, até aquele momento, não tinha ciência. Um exemplo bastante interessante é o fato de um dos prédios que ele mais frequentava, originalmente, seria um centro de distribuição de propaganda nazista durante o governo de Getúlio Vargas nos anos 1930 e 1940, que tinha Recife como uma cidade estratégica para a propagação deste conteúdo.

    O longa também mostra o destino de muitos destes cinemas que se encontram fechados, e o diretor faz a escolha certeira de usar filmagens de arquivo para, logo depois, revelar o estado atual destes prédios, afetados ou pela chegada de novos atores devido à desvalorização imobiliária do centro de Recife, como igrejas neopentecostais e lojas de eletrodomésticos, ou pelo completo abandono. Uma sequência em particular chama a atenção: um antigo cinema de rua que, outrora, era reminiscente à um palácio; mas, agora, parece um prédio mal-assombrado, com luzes piscando e morcegos voando. É uma parte triste de testemunhar, pois é possível ver que estes cinemas faziam parte da personalidade da cidade; porém, o cineasta faz questão de demonstrar que o centro de Recife não morreu por conta disso, adicionando um tom agridoce aos seus depoimentos.

    O mesmo cenário pode ser visto em Goiânia: em sua era de ouro, existiam cerca de 15 cinemas de rua no centro da capital de Goiás. Porém, com o tempo, a urbanização veio, com a desvalorização imobiliária, o deslocamento do centro financeiro da cidade e o surgimento de novos atores, forçando estes estabelecimentos a fecharem as portas. Destes 15, somente três permanecem em pé: o Cine Ritz, o Cine Ouro (que somente sedia eventos, não sendo um cinema comercial), e o Cine Cultura, este último sendo o cinema no qual possibilitou a escrita dessa resenha pela exibição de “Retratos Fantasmas”. Caso queiram saber mais sobre a história destes cinemas, este crítico auxiliou em uma reportagem investigativa sobre eles, e ela pode ser lida aqui neste link.

(Urbanization and street movie theaters

Another subject that's put into discussion, in its majority, in the second part of “Pictures of Ghosts” is urbanization and its impact in downtown Recife and, especially, in its street movie theaters. Kleber is our guide through the establishments that marked his formation as a cinephile, many of which have their doors closed nowadays. Diving into the story of each cinema approached, the director himself discovers things that even he, up until that point, was unaware of. One pretty interesting example is the fact that one of the buildings he attended the most, originally, would be a distribution centre of Nazi propaganda during the tenure of Getúlio Vargas in the 1930s and 1940s, which had Recife as a strategic city for the spreading of this content.

The film also shows the destiny of many of these theaters that are closed, and the director makes the right choice of using archival footage to, soon after, reveal the current state of these buildings, affected either by the arrival of new actors due to the real estate devaluation of downtown Recife, like neo-pentecostal churches and department stores, or by complete abandon. One particular sequence comes to mind: an old street movie theater that, previously, was reminiscent of a palace; but, now, it looks like a real haunted building, with blinking lights and flying bats. It's a sad part to witness, because it's possible to see how these cinemas were part of the city's personality; however, the filmmaker shows us that downtown Recife isn't “dead” because of that, adding a bittersweet tone to his statements.

The same scenario can be seen in Goiânia: in its golden age, there were 15 street movie theaters in the downtown part of Goiás's capital. However, throughout time, urbanization came, with its real estate devaluation, the displacement of the city's financial centre and the upbringing of new actors, forcing these establishments to close their doors. Out of these 15, only three remain standing tall: Cine Ritz, Cine Ouro (which only hosts events, not being a commercial venue), and Cine Cultura, the latter being the one that made this review possible, through its screening of “Pictures of Ghosts”. In case you wish to know more about these buildings, this critic helped in writing an investigative report on them, and you can read it (in Portuguese) here.)



A memória afetiva como resistência

    A terceira e última parte de “Retratos Fantasmas” oferece uma luz no fim do túnel para o cenário nada promissor da parte anterior, focando na sobrevivência de um cinema em particular no centro de Recife, o Cinema São Luiz, inaugurado em 1952 e tombado em 2008 pelo governo estadual. A paixão do cineasta na descrição do espaço e as imagens reconfortantes de filas quilométricas para entrar na sala são a chave para compreender o porquê de alguns cinemas de rua permanecerem de pé: as memórias afetivas das pessoas que o frequentam. Este terceiro segmento tem um título bem interessante: “Igrejas e Espíritos Santos”. Poderia ser uma referência à aquisição destes espaços por grupos religiosos, mas há um segundo sentido muito mais profundo: a idealização do cinema de rua como uma espécie de “templo”, com o Cinema São Luiz sendo um perfeito exemplo disso. (Obs.: O Cinema São Luiz se encontra fechado desde maio de 2022, mas uma reinauguração foi programada para 2024, anunciada perto da estreia deste documentário. Coincidência? Acho que não.)

    O “espírito” seria a experiência de ir em um cinema de rua em si, a qual era tratada antigamente como um verdadeiro evento. Era “o” lugar para ir nos finais de semana, ou nas matinês. Atualmente, com os cinemas sediados em shopping centers, temos acesso à mais alta tecnologia disponível no mercado, e isso é simplesmente sensacional. Porém, ao mesmo tempo, é possível sentir que falta algo no processo da ida como um todo, e esse sentimento vem diretamente das memórias afetivas que uma pessoa tem em relação à ida ao cinema. Não é coincidência que muitas pessoas (não lembro se eu fui uma delas) tiveram sua primeira experiência com a telona em um destes estabelecimentos no centro das cidades. Em Goiânia, isso se tornou bastante evidente quando um dos únicos sobreviventes do Centro, o Cine Ritz, sofreu uma breve interdição. Caso se interessem em ler mais sobre o assunto, este crítico fez uma reportagem que pode ser lida aqui neste link.

(Affective memory as resistance

The third and final part of “Pictures of Ghosts” offers a light at the end of the tunnel to the grim scenario of the previous part, focusing on the survival of a particular theater in downtown Recife, Cinema São Luiz, which opened in 1952 and was considered a cultural heritage in 2008 by the state's government. The filmmaker's passion in the description of the space and the comforting images of mile-long lines to enter the room are the key to understand why some street cinemas still stand tall: the affective memories of people who attend them. This third segment has a rather interesting title: “Churches and Holy Spirits”. It could be a reference to the acquisition of these spaces by religious groups, but there's a much deeper second meaning: the idealization of the street movie theater as some sort of “temple”, with Cinema São Luiz being a perfect example of that. (Fact: Cinema São Luiz has been closed since May 2022, but a re-opening was programmed for 2024, announced close to the release of this documentary. Coincidence? I think not.)

The “spirit” would be the experience of going to a street movie theater itself, which was treated as a real event, at its golden years. It was “the” place to go to on weekends, or matinees. Nowadays, with movie theaters being linked with shopping centers, we have access to all the cutting-edge technology has to offer in the market, and that's simply sensational. However, at the same time, we can't help but feel like it's missing something in the process as a whole, and that feeling comes directly from the affective memories a person has in regards of going to the movies. It's not a coincidence that many people (can't remember if I'm among them) had their first moviegoing experience at one of these establishments in the downtown neighborhood of their cities. In Goiânia, that became really evident when one of the last street cinema survivors, Cine Ritz, suffered a brief interdiction. If you are interested in reading more about it, this critic made a report that can be read (in Portuguese) here.)



Resumindo, “Retratos Fantasmas” é um relato íntimo e, ao mesmo tempo, universal sobre história, cinema, memória e resistência. Sendo o trabalho mais pessoal de Kleber Mendonça Filho até o momento, esta jornada nostálgica e melancólica pelo passado destaca a experiência de ir à um cinema de rua como única e a importância destes estabelecimentos para a personalidade cultural das cidades brasileiras, ressaltando a memória como fator chave para a permanência dos mesmos. Torcendo com todas as forças para que o Brasil escolha este filme como representante para o Oscar 2024 de Melhor Filme Internacional. Cinema é massa! (Quem viu, vai entender.)

Nota: 10 de 10!!

É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Até a próxima,

João Pedro

(In a nutshell, “Pictures of Ghosts” is an intimate and, simultaneously, universal statement on history, filmmaking, memory and resistance. As Kleber Mendonça Filho's most personal work to date, this nostalgic, bittersweet journey to the past highlights the experience of going to a street movie theater as unique and the importance of these establishments to the cultural personalities of Brazilian cities, making memory a key factor for those buildings to remain standing tall. I'm rooting with all my heart that Brazil chooses this film to represent the country in 2024's Oscar race for Best International Feature Film.

I give it a 10 out of 10!!

That's it, guys! I hope you liked it! See you next time,

João Pedro)


sexta-feira, 18 de agosto de 2023

"Fale Comigo": a estreia aterrorizante dos irmãos Danny e Michael Philippou (Bilíngue)

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Não é uma regra, mas filmes de terror contemporâneos costumam ter cenas iniciais que não só atiçam a curiosidade do espectador, mas que também chocam pelo resultado final, levando quem assiste a se perguntar “O que diabos está acontecendo?”. Em “Corra!”, de 2017, vemos um homem negro sendo cautelosamente perseguido e sequestrado por uma pessoa com capacete medieval que dirige um carro branco como a neve. Em “Corrente do Mal”, de 2014, acompanhamos uma jovem paranoica fugindo de casa e indo para a praia, com uma ameaça invisível aparentemente em seu encalço. Depois de se despedir dos pais, a cena corta para mostrar o cadáver mutilado da moça, com membros grotescamente retorcidos. No caso de “Fale Comigo”, uma das estreias desta quinta-feira (17) nos cinemas, não é uma exceção. Em uma tomada contínua, um adolescente procura o irmão em uma festa, e as coisas escalam rapidamente de uma maneira bem macabra.

Essa cena é o pontapé inicial para a estreia dos gêmeos australianos Danny e Michael Philippou na direção, YouTubers anteriormente conhecidos por realizarem vídeos inusitados e surpreendentemente violentos com o mascote do McDonald's, o palhaço Ronald McDonald. Após uma exibição mega comentada no Festival de Sundance, nos EUA, o filme foi adquirido pela A24, distribuidora que não só se tornou a primeira na história do Oscar a vencer as 8 categorias principais (Filme, Direção, Atuações e Roteiros), como também é agora uma referência no cenário do terror contemporâneo, entregando obras como “Hereditário”, “A Bruxa” e “O Farol”. “Fale Comigo” é um terror com um orçamento indie e um apelo para as massas, graças à abordagem atual de uma premissa básica, atuações promissoras de um elenco jovem praticamente desconhecido e um controle magistral dos aspectos técnicos, tornando a experiência cada vez mais imersiva.

(It's not a rule, but contemporary horror films usually have opening scenes that not only tickle the viewer's curiosity, but also shock them because of their outcome, leading those who are watching to ask themselves “What the hell is going on?”. In 2017's “Get Out”, we see a Black man being carefully stalked and kidnapped by a person with a medieval helmet who drives a car as white as snow. In 2014's “It Follows”, we follow a paranoid young woman running away from home and driving to the beach, with an invisible threat apparently in pursuit. After saying goodbye to her parents, the scene cuts to show the woman's mutilated corpse, with grotesquely twisted limbs. When it comes to “Talk to Me”, one of this Thursday's (17th) newest releases in Brazil, it's not an exception. In one continuous shot, a teenager looks for his brother in a party, and things escalate quickly in a rather macabre manner.

That scene kickstarts the directorial debut of Australian twins Danny and Michael Philippou, a pair of YouTubers previously known for making unusual and suprisingly violent videos with the McDonald's mascot, clown Ronald McDonald. After a super-buzzed screening at the Sundance Film Festival, the film was acquired by A24, a distributor that not only became the first in Oscar history to win all 8 main categories (Picture, Director, Acting and Screenplays), but it's also now a reference in the contemporary horror scene, delivering works like “Hereditary”, “The Witch” and “The Lighthouse”. “Talk to Me” is a horror film with an indie budget and a mass appeal, thanks to the current approach to a basic premise, promising performances by a practically unknown cast of young actors and a masterful control of its technical aspects, making the experience all the more immersive.)



Trama

Fale Comigo” acompanha um grupo de adolescentes que realiza sessões espíritas transmitidas ao vivo pelas redes sociais, usando uma mão de cerâmica embalsamada de origens desconhecidas. Quando Mia (Sophie Wilde), uma jovem traumatizada pela morte inexplicável da mãe, se oferece para ser a próxima a fazer contato com os espíritos, as coisas dão terrivelmente errado, e o grupo precisa correr contra o tempo para salvar um de seus amigos antes que seja tarde demais.

(Plot

Talk to Me” follows a group of teenagers that conduct séances broadcasted live through social media, using an embalmed ceramic hand, its origins unknown. When Mia (Sophie Wilde), a young woman who's traumatized by her mother's inexplicable death, volunteers to be the next one to make contact with the spirits, things go terribly wrong, and the group needs to race against time to save one of their own before it's too late.)



Premissa básica, com upgrades

Um dos fatores-chave para que o roteiro dos Philippou, escrito em parceria com Bill Hinzman e Daley Pearson, funcione tão bem é a abordagem atual de uma premissa que já foi utilizada inúmeras vezes no gênero, ou seja, a de pessoas que mexem com coisas que não deveriam ter sido perturbadas e acabam levando a pior por isso. Uma sacada brilhante que os diretores têm é o uso das redes sociais e os desafios virais para justificar as sessões espíritas que os protagonistas realizam, remetendo, por exemplo, ao Charlie Charlie Challenge e ao fenômeno controverso e perturbador do desafio Baleia Azul, que levou crianças ao suicídio ao redor do mundo. Essa interpretação faz com que o enredo seja autêntico, original e até relevante para os dias atuais.

Outro grande acerto dos cineastas é a mistura homogênea entre o terror sobrenatural, permeado de jumpscares e sustos eficientes, e uma atmosfera gradualmente perturbadora, que permite uma abordagem temática mais aprofundada no roteiro, assim como a criação de metáforas e alegorias, o que sempre é bem-vindo no gênero. Ao lidar com os temas do luto e da perda, “Fale Comigo” lembra bastante o também australiano “O Babadook”, de 2014, escrito e dirigido por Jennifer Kent (CURIOSIDADE: os Philippou participaram da equipe técnica do filme de Kent); e os filmes e séries comandados por Mike Flanagan, como “O Espelho”, “A Maldição da Residência Hill” e “Missa da Meia-Noite”. É um filme muito assustador, contendo várias sequências que deixaram este crítico boquiaberto, mas que possui uma veia dramática que comunica muito bem com os sustos que consegue transmitir ao público.

Um último aspecto que poderia ter dado errado nas mãos de outros diretores, mas que os Philippou tiram de letra é a criação de uma mitologia, apelando de forma eficaz para o terror convencional de franquias como “Invocação do Mal” e “It: A Coisa”. Pouco se sabe sobre a mão de cerâmica embalsamada que os protagonistas utilizam para fazer contato com espíritos, mas, somente pelo visual vandalizado e pela presença imponente do objeto em tela, pode-se perceber que há toda uma história a ser contada sobre ele. Os cineastas, espertamente, deixam algumas pontas soltas no roteiro, com um propósito bem claro em mente: uma nova franquia. A A24 se impressionou tanto com o desempenho de “Fale Comigo” nas bilheterias e na crítica que deu a luz verde para uma sequência, a ser dirigida novamente pelos Philippou. Além disso, os realizadores confirmaram a existência de um prólogo abordando a trajetória dos personagens da cena inicial, filmado inteiramente através de telas de celulares e mídias sociais, à la “Buscando”, de 2018. Ao que tudo indica, esse longa-metragem é só o começo de algo extremamente promissor.

(Basic premise, with upgrades

One of the key factors for the screenplay written by the Philippou brothers, in partnership with Bill Hinzman and Daley Pearson, to work this well is the contemporary approach of a premise that's been vastly used in the genre, that of people who mess with things they should've left undisturbed and end up getting the worst of it because of that. A brilliant idea the directors apply is the use of social media and viral challenges in order to justify the séances the protagonists have throughout the plot, dialing back, for example, to the Charlie Charlie Challenge and the controversial and disturbing phenomenon of the Blue Whale Challenge, which led children to suicide all around the world. That portrayal of reality makes the plot authentic, original and even timely to our days.

Another thing the directors get right is the uniform mix between supernatural horror, permeated with effective jumpscares, and a gradually disturbing atmosphere, which allows a more in-depth thematic approach in the script, as well as the creation of metaphors and allegories, which are always welcome in the genre. By dealing with the themes of grief and loss, “Talk to Me” reminded me a lot of the also Australian “The Babadook”, released in 2014, written and directed by Jennifer Kent (FUN FACT: the Philippou brothers were part of the crew in Kent's film); and the films and TV shows spearheaded by Mike Flanagan, such as “Oculus”, “The Haunting of Hill House” and “Midnight Mass”. It's a really frightening film, with several sequences that left this particular critic's jaw dropped, but it has a dramatic vein that connects really well with the scares it's trying to convey.

One last aspect that could've gone terribly wrong in the hands of other directors, but that the Philippou twins excel at is the creation of a mythology or lore, effectively appealing to the more conventional horror of franchises such as “The Conjuring” and “It”. The viewers know very little about the embalmed ceramic hand that the protagonists use to make contact with spirits, but, just by the vandalized look of it and the object's imponent presence onscreen, a viewer can tell there's a whole story to be told about it. The filmmakers, cleverly, intentionally leave some loose ends in the script, with a very clear purpose in mind: a new franchise. A24 was so impressed by the box-office returns and critical praise of “Talk to Me” that it greenlit a sequel, to be directed again by the Philippou brothers. Besides that, the directors confirmed the existence of a prequel about the opening scene's characters, shot entirely through phone cameras and social media, a la 2018's “Searching”. With all these things considered, this feature is only the beginning of something extremely promising.)



Elenco iniciante (e promissor)

Os irmãos Philippou fizeram a escolha certa de escalar atores jovens praticamente desconhecidos pelo grande público para interpretar os protagonistas. O desenvolvimento de todos eles é tão bom aqui, que em todo projeto futuro que eles aparecerem, o espectador é plenamente capaz de apontar pra tela e dizer: “Ó, aquele(a) ali participou de 'Fale Comigo'!”. Lembrem destes nomes: Sophie Wilde, Alexandra Jensen, Joe Bird, Otis Dhanji, Zoe Terakes, Chris Alosio, Ari McCarthy e Sunny Johnson. Um toque extra que acrescenta à autenticidade das performances de cada um é o fato de realmente parecerem e agirem como adolescentes, permitindo uma naturalidade que raramente é vista em atores com pouca experiência. Todos estes jovens têm um futuro brilhante pela frente, e eu mal posso esperar para ver o que eles farão a seguir.

Do lado adulto, temos a única atriz conhecida pelo público, através de Miranda Otto, melhor lembrada pelo seu papel como Éowyn na trilogia “O Senhor dos Anéis”, porém também marcante no gênero do terror como uma das tias da protagonista de “O Mundo Sombrio de Sabrina”, da Netflix. Além de Otto, temos performances que chamam a atenção de Alexandria Steffensen e Marcus Johnson. Na trama, os adultos não têm um papel tão importante a cumprir quanto os jovens, somente servindo como uma espécie de auxílio para que os arcos narrativos dos adolescentes cheguem à conclusão, em especial, no caso da protagonista interpretada por Wilde.

(A beginner (and promising) young cast

The Philippou brothers made the right choice in casting young actors that are practically unknown to the wider audience to play the main characters. The work delivered by all of them is so good here, that in every future project they end up in, the viewer is capable of pointing at the screen and saying: “Hey, that one was in 'Talk to Me'!”. Remember these names: Sophie Wilde, Alexandra Jensen, Joe Bird, Otis Dhanji, Zoe Terakes, Chris Alosio, Ari McCarthy and Sunny Johnson. One extra touch that adds to the authenticity of their performances is the fact that they actually look and act like teenagers, allowing a natural approach to acting that's rarely seen in actors with little onscreen experience. All of these youngsters have a brilliant future ahead of them, and I can't wait to see what they'll do next.

On the grown-up side, we have the only actress that's known to the public, through Miranda Otto, best remembered for her role as Éowyn in the “Lord of the Rings” trilogy, yet also great in the horror genre as one of the protagonist's aunts in Netflix's “Chilling Adventures of Sabrina”. Besides Otto, we have honorable mention performances by Alexandria Steffensen and Marcus Johnson. In the plot, the adults don't have a much important role to play as the youngsters, only serving as some sort of assistance so that their narrative arcs reach a conclusion, especially, when it comes to the protagonist played by Wilde.)



Orçamento pequeno, grandes ambições

Um fato interessante sobre “Fale Comigo” é que, como um filme independente, ele teve um orçamento bem pequeno, de aproximadamente US$4,5 milhões. Para fins de comparação, o primeiro “Invocação do Mal” teve US$20 milhões ao seu dispor. “It: A Coisa” foi ainda além, custando US$35 a 40 milhões. Para mim, é simplesmente impressionante que duas pessoas cuja experiência anterior com o fazer cinematográfico era através do YouTube conseguiram fazer algo tão eficiente e profissionalmente bem feito com uma quantidade extremamente limitada de dinheiro. É incrível ver o controle que Danny e Michael Philippou mostram em todos os aspectos técnicos, para que eles possam ter o efeito máximo no espectador. A câmera do Aaron McLisky e a montagem do Geoff Lamb sabem exatamente quando cortar e quando estender a cena para que a atmosfera envolva quem está assistindo por completo. O design de som é essencialmente imersivo, adicionando ao caráter perturbador de algumas cenas em particular.

E por último, mas não menos importante, uma vantagem enorme que os filmes de terror independentes têm, pelo orçamento limitado, é o uso de efeitos especiais práticos. Eu já disse isso aqui e digo novamente: efeitos em computação gráfica nunca serão mais assustadores do que aqueles gerados por um trabalho árduo de maquiagem, penteado e litros de sangue cenográfico. O realismo e a dedicação nessa arte fazem tudo que está em tela parecer palpável, e isso funciona da melhor maneira possível em “Fale Comigo”. Os espíritos, quando visíveis, são completamente aterrorizantes, e as cenas onde os personagens são possuídos por estes espíritos funcionam não somente pela atuação convincente dos atores, mas também pelo uso criativo de efeitos práticos, que causam um desconforto e medo maiores no espectador, por aquilo parecer real. Para mim, isso é algo que todo filme de terror deveria seguir, na medida do possível.

(Small budget, big ambitions

An interesting fact about “Talk to Me” is that, as an independent film, it had a relatively small budget, of approximately US$4.5 million. For example, in order to compare it to other horror films, the first “The Conjuring” had US$20 million to spend. 2017's “It” went even further beyond, costing US$35 to 40 million. To me, it's simply astonishing that two people whose previous experience with filmmaking was through YouTube were able to do something this effective and professionally well-done with an extremely limited amount of money. It's incredible to see the control that Danny and Michael Philippou show in every technical aspect, so that they can have maximum effect on the viewer. Aaron McLisky's camera and Geoff Lamb's editing know exactly when to cut and when to extend the scene for the atmosphere to completely envelop who's watching. The sound design is essentially immersive, adding to the disturbing vein of a few particular scenes.

And at last, but not least, an enormous advantage that indie horror films have, due to their limited budget, is the use of practical special effects. I've said this before and I'll say it again: CGI-generated effects will never be more frightening than the ones created through a hard work of make-up, hairstyling and gallons of fake blood. The realism and dedication put into that craft make everything onscreen seem palpable, and that works in the best way possible in “Talk to Me”. The spirits, when visible, are completely terrifying, and the scenes where the characters are possessed by those spirits work not only because of the actors' convincing performances, but also through the creative use of practical effects, which cause a larger amount of discomfort and fear in the viewer, because of the fact that it actually looks real. To me, that's something that every horror film should stick by, whenever it's possible.)



Resumindo, com “Fale Comigo”, os estreantes australianos Danny e Michael Philippou fazem um cartão de visitas deliciosamente aterrorizante, graças à abordagem contemporânea de uma premissa amplamente utilizada, performances dedicadas de um elenco jovem promissor e um controle criativo louvável dos aspectos técnicos ao seu dispor, resultando no melhor filme de terror de 2023 até o momento e um dos melhores exemplares do gênero distribuídos pela A24. Que venha a sequência!

Nota: 10 de 10!!

É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Até a próxima,

João Pedro

(In a nutshell, with “Talk to Me”, Australian debuting directors Danny and Michael Philippou make a delightfully terrifying calling card, thanks to the contemporary approach of a widely used premise, dedicated performances from a young promising cast and a praise-worthy creative control over its technical aspects, resulting in the best horror movie of 2023 so far and one of the best outings of the genre distributed by A24. Bring us the sequel!

I give it a 10 out of 10!!

That's it, guys! I hope you liked it! See you next time,

João Pedro)