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Poucos diretores atualmente possuem um estilo de fazer cinema tão singular e facilmente identificável como o norte-americano Wes Anderson. Ao longo de sua carreira, através de filmes como “O Grande Hotel Budapeste” e “Os Excêntricos Tenenbaums”, o cineasta estabeleceu uma série de recursos visuais e narrativos que se tornaram recorrentes em sua filmografia, inspirando tendências nas redes sociais e paródias simulando sua estética inconfundível, composta de enquadramentos simétricos, paletas de cor em tons pastel, e ambientes detalhados e cuidadosamente decorados. Então, com esta fama entre os cinéfilos, era só questão de tempo até que Wes adentrasse no cenário dos serviços de streaming. E, com seus quatro curtas lançados na Netflix a partir da última quarta-feira (27 de setembro), Anderson realiza seu trabalho mais acessível desde “O Grande Hotel Budapeste”, revisitando a escrita do britânico Roald Dahl de maneira ousada, teatral e inventiva, com tempos de duração de 20 a 40 minutos.
14 anos após sua adaptação animada em stop-motion e indicada ao Oscar de “O Fantástico Sr. Raposo”, obra infantil de Dahl, Wes foi contratado pela gigante do streaming para comandar quatro curtas-metragens baseados em contos mais adultos do autor: “A Incrível História de Henry Sugar”, “O Cisne”, “O Caçador de Ratos” e “Veneno”. Contando com uma trupe mais compacta de atores, em comparação com os grandes elencos costumeiros do diretor (em seu longa mais recente, “Asteroid City”, também lançado em 2023, nomes como Tom Hanks, Scarlett Johansson e Margot Robbie marcaram presença), Anderson realiza adaptações extremamente fiéis ao material original enquanto mantém seu estilo inconfundível intacto, servindo como uma porta de entrada perfeita para aqueles que desejam explorar sua filmografia mais a fundo.
(Very few directors nowadays have a filmmaking style as singular and easily identifiable as American-born Wes Anderson. Throughout his career, through films such as “The Grand Budapest Hotel” and “The Royal Tenenbaums”, the filmmaker established a series of visual and narrative resources that became recurring features in his filmography, inspiring social media trends and parodies simulating his unmistakable aesthetic, composed by symmetrical framing, pastel-coloured palettes, and detailed, carefully decorated environments. So, with this fame amongst cinephiles, it was only a matter of time until Wes entered the streaming service scenario. And, with his four short films released on Netflix from last Wednesday (Sep. 27th), Anderson makes his most accessible work since “The Grand Budapest Hotel”, revisiting the writings of British author Roald Dahl in a bold, theatrical and inventive way, with runtimes that vary from 20 to 40 minutes.
14 years after his stop-motion animated, Oscar-nominated adaptation of “Fantastic Mr. Fox”, a children's work by Dahl, Wes was hired by the streaming giant to helm four short films based on more mature stories from the author: “The Wonderful Story of Henry Sugar”, “The Swan”, “The Rat Catcher” and “Poison”. Relying on a more compact troupe of actors, in comparison with the director's usual ensemble casts (in his most recent film, “Asteroid City”, also released in 2023, names like Tom Hanks, Scarlett Johansson and Margot Robbie were present), Anderson accomplishes extremely faithful adaptations to the original material while maintains his unmistakable style intact, serving as a perfect starting point for those who wish to explore his filmography a little deeper.)
Trama
Ao contrário de antologias, compostas por histórias aparentemente independentes conectadas por um fio condutor em comum, gênero que o próprio Wes experimentou com “A Crônica Francesa” (2021), os quatro curtas disponíveis na Netflix são promovidos como pequenos filmes completamente separados um do outro, não possuindo nenhuma conexão narrativa. O carro-chefe da coleção, “A Incrível História de Henry Sugar”, acompanha um homem ambicioso que se dispõe a aprender técnicas extraordinárias para ganhar dinheiro em jogos de azar. “O Cisne”, inspirado em um fato real, segue um jovem prodígio que é atormentado por dois valentões.
“O Caçador de Ratos”, parte de uma coleção de quatro histórias de Dahl chamada “Claud's Dog”, segue um exterminador profissional de roedores, que expõe suas técnicas pouco convencionais para capturar suas presas ao dono de um posto de gasolina e a um repórter. Por fim, “Veneno”, o único conto não ambientado no Reino Unido, acompanha um jovem militar britânico que, ao chegar em seu bangalô na Índia, encontra seu colega de quarto paralisado na cama, alegando que uma cobra venenosa está sob as cobertas.
(Plot
Unlike anthology films, composed by apparently independent stories connected by a common thread, a genre that Wes himself experimented with 2021's “The French Dispatch”, the four short films available on Netflix are promoted as little films that are completely separate from each other, not possessing any narrative connection. The main one in the collection, “The Wonderful Story of Henry Sugar”, follows an ambitious man who learns extraordinary abilities to make money playing cards. “The Swan”, inspired by a true story, consists of a prodigious young man who is tormented by two bullies.
“The Rat Catcher”, a standalone tale which is part of a four-story collection by Dahl named “Claud's Dog”, follows a professional rodent exterminator, who exposes his unconventional techniques to capture his prey to the owner of a gas station and a reporter. Lastly, “Poison”, the only story not set in the United Kingdom, accompanies a young British soldier who, by arriving at his bungalow in India, finds his roommate paralyzed in bed, claiming that a venomous snake is under his covers.)
Fidelidade ao extremo
É difícil chamar os quatro curtas-metragens de Wes Anderson na Netflix de “adaptações”, porque, ao contrário de muitas obras inspiradas em livros que omitem partes e segmentos de seus materiais originais, o diretor faz a escolha inusitada de se ater às palavras exatas escritas por Roald Dahl. Ou seja, todas as narrações, descrições de cenários e diálogos presentes nos curtas fazem parte do texto integral dos contos nos quais eles foram baseados. Isto não só permite que os pequenos filmes sejam extremamente fiéis às histórias adaptadas, como também desperta uma espécie de companheirismo entre a escrita de Dahl e o cinema de Anderson, devido ao caráter excêntrico que os dois compartilham, especialmente através dos personagens. O personagem-título de “Henry Sugar”, por exemplo, não é tão distante, em termos de personalidade, do concierge Gustave H., de “O Grande Hotel Budapeste”.
Outro detalhe que é importante ressaltar é que o meio cinematográfico não é o único utilizado pelo diretor para adaptar os contos de Dahl. Vários recursos do teatro são amplamente replicados aqui: a recorrente quebra da quarta parede pelos personagens principais, que se direcionam ao público nas partes de narração; a aparição rápida de técnicos nos bastidores, que aplicam maquiagem nos atores em tempo real e providenciam os adereços; a mudança quase instantânea de cenários, simbolizando a troca de cenas; a iluminação, que muitas vezes foca, como que um holofote, no olhar dos personagens. Essa proximidade com a maneira teatral de contar histórias faz com que os curtas sejam o trabalho mais experimental de Wes até o momento, com o cineasta encontrando maneiras criativas e inventivas de homenagear o legado deixado pelo autor britânico, que faleceu em 1990.
A abordagem extremamente fiel de Anderson é especialmente ousada, nos dias de hoje, pela recente revisão e reedição que as obras infantis de Roald Dahl sofreram no Reino Unido, este ano. Com o autor sendo detentor de uma linguagem essencialmente ácida e sarcástica, mesmo para o público infantil, a editora britânica de clássicos como “Matilda”, “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “James e o Pêssego Gigante” e “A Convenção das Bruxas” ou removeu ou modificou radicalmente palavras e sentenças consideradas “ofensivas” ou “problemáticas” para a atualidade. A decisão foi recebida com críticas de autores como Margaret Atwood e Salman Rushdie, condenando a revisão como uma espécie de censura. O fato de que Wes fez questão de adaptar a linguagem original de Dahl faz com que os curtas sejam a resposta perfeita para toda esta controvérsia, mostrando reverência, honestidade e, principalmente, respeito às escritas que cativaram (e ainda cativam) gerações de leitores.
(Faithfulness to the extreme
It's hard to call Wes Anderson's four Netflix shorts “adaptations”, because, unlike many works inspired by books that omit parts and segments from their original material, the director makes an unexpected choice of translating the exact same words written by Roald Dahl to the screen. Meaning that, every narration, description of setting and line of dialogue in these shorts is directly taken from the text in which they were based on. That not only allows these small films to be extremely faithful to the adapted stories, as it also awakens some sort of fellowship between Dahl's writing and Anderson's filmmaking, due to the quirky, eccentric tone they share, especially through their characters. The title character of “Henry Sugar”, for example, isn't that far away, when it comes to personality, from “The Grand Budapest Hotel”'s concierge Gustave H.
Another detail that's important to reinforce is that the cinematic medium isn't the only one the director uses to adapt Dahl's tales. Several resources from the theatre are widely replicated here: the recurring fourth-wall break, where the main character speaks to the audience through narration; quick appearances by backstage technicians, who apply make-up on the actors in real time and provide them with props; the almost instant change in settings, as a symbol of a change of scenery; the lighting, that focuses extensively, almost like a spotlight, on the characters' gaze. This proximity with the theatrical way of storytelling makes the shorts stand out as Wes's most experimental work yet, as the filmmaker finds creative and inventive ways to pay homage to the legacy left by the British author, who passed away in 1990.
Anderson's extremely faithful approach is especially bold, nowadays, due to the recent revision and re-editing that Roald Dahl's work for children suffered in the United Kingdom, earlier this year. With the author donning an essentially acid and sarcastic language, even when it comes to children's books, the British publishing company of classics such as “Matilda”, “Charlie and the Chocolate Factory”, “James and the Giant Peach” and “The Witches” either removed or radically changed words and sentences that could be considered “offensive” or “problematic” for today's audience. The decision was met with backlash from authors like Margaret Atwood and Salman Rushdie, who condemned the revision as an act of censorship. The fact that Wes stood his ground using Dahl's original language allows these shorts to be the perfect answer to all this controversy, as it displays reverence, honesty, and, mainly, respect to the writings that won over (and still win over) generations of readers.)
Papéis diferentes, mesmo elenco
Tecnicamente, Wes Anderson dispõe de apenas seis atores que interpretam papéis diferentes ao longo dos quatro curtas: Benedict Cumberbatch, Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Dev Patel, Rupert Friend e Richard Ayoade. Felizmente, todos têm seu momento para brilhar aqui. Cumberbatch e Kingsley têm seus melhores desempenhos em “A Incrível História de Henry Sugar”, com o ator de “Doutor Estranho” em especial fazendo uso de um padrão de fala essencialmente acelerado, lembrando muito o seu trabalho em “Sherlock”. Friend, por contrapartida, domina “O Cisne”, sendo o único personagem e narrador da trama, modificando a voz e os trejeitos físicos de uma maneira muito divertida para adequar todas as figuras que ele interpreta ao longo dos concisos 17 minutos de duração.
Fiennes, em sua segunda colaboração com Anderson após “O Grande Hotel Budapeste”, interpreta tanto Roald Dahl, em uma escalação perfeita, aparecendo nos quatro curtas como narrador, quanto o personagem-título de “O Caçador de Ratos”, de longe uma das figuras mais excêntricas e aterrorizantes a povoar tanto um conto de Dahl quanto um filme de Wes Anderson. Patel e Ayoade, novatos na família cinematográfica do diretor, são um verdadeiro deleite. Em “Veneno”, Patel se destaca pela jovialidade, dedicação e rapidez demonstrada nos diálogos. Já Ayoade possui um papel mais central em “O Caçador de Ratos”, como um exemplo perfeito do senso de humor inexpressivo que é quase onipresente no cinema de Wes, arrancando boas risadas.
(Different roles, same cast
Technically, Wes Anderson relies on only six actors who portray different roles throughout the four short films: Benedict Cumberbatch, Ralph Fiennes, Ben Kingsley, Dev Patel, Rupert Friend and Richard Ayoade. Fortunately, they all have their moments to shine here. Cumberbatch and Kingsley have their best development in “The Wonderful Story of Henry Sugar”, with the “Doctor Strange” actor in particular making use of an essentially accelerated speech pattern, which calls back to his incredible work in “Sherlock”. Friend, on the other hand, dominates the screen in “The Swan”, as the plot's only on-screen character and narrator, modifying his voice and body language in a very fun way to adequate all the figures he plays throughout the concise 17-minute runtime.
Fiennes, in his second collaboration with Anderson after “The Grand Budapest Hotel”, plays both Roald Dahl, in a perfect casting, appearing on all four shorts as their narrator, and the title character of “The Rat Catcher”, easily one of the most eccentric and terrifying figures to ever appear on either a Dahl story or a Wes Anderson film. Patel and Ayoade, new arrivals on the director's cinematic family, are a true delight. In “Poison”, Patel stands out for his youthfulness, dedication and fast-paced dialogue delivery. Ayoade has a more central role in “The Rat Catcher”, being the perfect example of the deadpan sense of humor that's almost omnipresent in Wes's cinema, getting good laughs out of the viewer.)
Estilo intacto, com alguns complementos (e ressalvas)
Tudo que alguém poderia esperar visualmente de um filme de Wes Anderson se encontra 100% presente nestes quatro curtas. Enquadramentos simétricos, experimentos com vários formatos de tela, paletas de cor em tons pastéis, ambientações cuidadosamente decoradas, animação em stop-motion, o uso assertivo de iluminação para criar um contraste entre luz e sombra. Anderson abraça completamente o estilo que ele mesmo construiu ao longo de sua carreira com resultados maravilhosos, reforçando o caráter artístico de sua estética e sua visão como diretor como uma das mais singulares e facilmente identificáveis da nossa geração.
Algo admirável que a direção de arte chefiada pelo colaborador recorrente Adam Stockhausen faz aqui é a tentativa de, pela abordagem teatral, fazer o que é fantástico (ou seja, fora da realidade) parecer minimalista. Um exemplo criativo disto é um segmento de “Henry Sugar”, onde o personagem-título, após ter aprendido as técnicas extraordinárias supracitadas, começa a meditar, com a composição visual da cena fazendo parecer que Sugar está flutuando. Porém, através das mudanças de cenário em tempo real, é possível ver que o ator está sentado em um banco cuja pintura se camufla com o fundo da ambientação, criando a ilusão que Dahl transmite no conto.
Porém, um curta em especial peca por não ter alcançado o potencial completo que poderia colocá-lo no mesmo patamar dos outros três, que é “O Caçador de Ratos”. Embora seja uma boa adaptação do conto de Dahl, ao meu ver, Anderson desperdiçou a oportunidade de fazer com que o curta-metragem fosse inteiramente animado em stop-motion, o que iria misturar perfeitamente o cartunesco da história com o realismo dos fantoches. Um exemplo claro disso é o retrato do próprio personagem-título, que é descrito pelo autor como um rato humano, mesclando as feições particulares do rato com a personalidade selvagem do exterminador. Fiennes interpreta o personagem com dedicação, mas o caráter violento, inesperado e aterrorizante da história original perde um pouco o seu brilho na adaptação, pela abordagem majoritariamente em live-action, na minha opinião.
(Intact style, with a few complements (and setbacks)
Everything that someone would come to visually expect of a Wes Anderson film is 100% present in these four shorts. Symmetrical framing, experiments with different aspect ratios, pastel color palettes, carefully decorated settings, stop-motion animation, the assertive use of lighting to create a contrast between light and shadow. Anderson fully embraces the style he built for himself throughout his career with wonderful results, reinforcing the artistic vein in his aesthetic and his filmmaking vision as one of the most singular and easily identifiable ones in our generation, currently.
Something admirable that the production design led by recurring collaborator Adam Stockhausen does here is the attempt of, because of its theatrical approach, making the fantastic (meaning, that which is not real) seem minimalistic. A creative example of this is a segment from “Henry Sugar”, where the title character, after learning the aforementioned extraordinary abilities, starts to meditate, with the scene's visual composition making it look like Sugar is levitating. However, through the real-time change of scenarios, it's possible to see that the actor is sitting on a stool where the painting blends in with the background of the setting, thus creating the illusion Dahl conveys in the story.
However, one particular short does not reach the full potential that could've put it on the same level as the other three, which is “The Rat Catcher”. Although it's a good adaptation of Dahl's story, in my opinion, Anderson wasted the opportunity of animating the entire short in stop-motion, which would perfectly blend the story's cartoonish parts with the puppets' realism. A clear example of that is the portrayal of the title character, who the author describes as a human rat, mixing the rat's particular features with the exterminator's wild personality. Fiennes plays the character with gusto, but the violent, unexpected and terrifying tone of the original story loses some of its sparkle in the adaptation, mostly because of its live-action approach, to me.)
Resumindo, os quatro curtas de Wes Anderson feitos para a Netflix encontram o diretor em uma abordagem narrativamente ousada e visualmente inventiva dos contos excêntricos de Roald Dahl, sendo o trabalho mais acessível do cineasta desde “O Grande Hotel Budapeste”, de 2014. Usando recursos do teatro para traduzir fielmente a linguagem de Dahl para a tela, os curtas também são o projeto mais experimental de Anderson até o momento, contando com atuações completamente dedicadas de uma trupe de seis atores para que as adaptações surtam o maior efeito possível no espectador.
A Incrível História de Henry Sugar: 10 de 10!
O Cisne: 10 de 10!
O Caçador de Ratos: 8,5 de 10!
Veneno: 10 de 10!
É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Até a próxima,
João Pedro
(In a nutshell, Wes Anderson's four short films made for Netflix find the director in a narratively bold and visually inventive approach to Roald Dahl's eccentric stories, being the filmmaker's most accessible work since 2014's “The Grand Budapest Hotel”. Using theatrical resources to faithfully translate Dahl's language to the screen, the shorts are also Anderson's most experimental project to date, relying on fully committed performances from a six-actor troupe to leave the strongest effect possible on audiences.
The Wonderful Story of Henry Sugar: 10 out of 10!
The Swan: 10 out of 10!
The Rat Catcher: 8,5 out of 10!
Poison: 10 out of 10!
That's it, guys! I hope you liked it! See you next time,
João Pedro)