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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

"Pinóquio por Guillermo del Toro": uma releitura mais sombria, autoral e reflexiva (Bilíngue)

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Em toda a minha vida, uma voz sussurrava suavemente no meu ouvido, dizendo: 'Viva, viva, viva'. Era a Morte.” - Jaime Sabines

(“All of my life a voice has whispered softly in my ear: 'Live, live, live.' It was Death.” - Jaime Sabines)


E aí, meus queridos cinéfilos! Tudo bem com vocês? Estou de volta, para falar sobre um dos lançamentos mais esperados de 2022, já disponível no catálogo original da Netflix! Um projeto ambicioso e querido para seu diretor, o filme em questão é uma releitura sombria, relevante, reflexiva e emocionante de seu atemporal material-fonte, trazido à vida por um trabalho belíssimo e extremamente realista de animação em stop-motion. Então, sem mais delongas, vamos falar de “Pinóquio por Guillermo del Toro”. Vamos lá!

(What's up, my dear film buffs! How are you guys doing? I'm back, in order to talk about one of 2022's most anticipated releases, which is already streaming on Netflix's original catalog. An ambitious project that's dear to its director's heart, the film I'm about to review is a dark, relevant, thought-provoking and thrilling retelling of its timeless source material, brought to life by gorgeous and extremely realistic work in stop-motion animation. So, without further ado, let's talk about “Guillermo del Toro's Pinocchio”. Let's go!)



Ambientado na Itália de Benito Mussolini, na década de 1930, o filme faz uma releitura da clássica história de Carlo Collodi. Após uma tragédia que o deixa traumatizado, Gepeto (voz original de David Bradley), um carpinteiro idoso, derruba um pinheiro enquanto embriagado e faz um boneco de madeira. Um espírito da floresta (voz original de Tilda Swinton) dá vida ao boneco e o batiza de Pinóquio (voz original de Gregory Mann), dando a ele a missão de ser um bom filho e companheiro para Gepeto. A atitude inocente e ingênua de Pinóquio frequentemente faz com que Gepeto o repreenda, forçando o boneco a fugir de casa e se juntar a um circo itinerante comandado pelo enganoso Conde Volpe (voz original de Christoph Waltz). Após receber uma lição de vida de um grilo falante (voz original de Ewan McGregor), Gepeto parte em uma jornada para reencontrar Pinóquio.

(Set in Benito Mussolini's Italy, in the 1930s, the film is a retelling of Carlo Collodi's classic story. After a tragedy that leaves him traumatized, Geppetto (voiced by David Bradley), an elderly woodcarver, cuts down a pine tree while drunk and makes a wooden puppet out of it. A forest sprite (voiced by Tilda Swinton) gives the puppet life and names him Pinocchio (voiced by Gregory Mann), giving him the mission of being a good son and companion to Geppetto. Pinocchio's innocent and naïve demeanor often makes Geppetto scold him, forcing the puppet to run away from home and join a traveling circus run by the deceitful Count Volpe (voiced by Christoph Waltz). After receiving a life lesson from a talking cricket (voiced by Ewan McGregor), Geppetto sets off on a journey to find Pinocchio.)



Ok, vamos começar com um fato: “Pinóquio por Guillermo del Toro” era o meu filme mais aguardado de 2022. Primeiro, simplesmente por se tratar de um filme de Guillermo del Toro, um dos meus diretores favoritos e o responsável por filmes vencedores do Oscar como “O Labirinto do Fauno” e “A Forma da Água”. Segundo, por se tratar do passion project do diretor. (Para quem não sabe, um passion project, ou “projeto de paixão” em tradução livre, é um projeto que seria um sonho realizado para quem deseja fazê-lo.) Levou um total de 15 anos para que “Pinóquio” fosse feito, após uma tentativa falha em 2008 de tirar o projeto do papel, engavetando-o indefinidamente. Mas, graças à parceria de sucesso do diretor com a Netflix, a gigante do streaming ressusscitou o projeto em 2018, dentro dos pré-requisitos impostos por del Toro.

Entre estes pré-requisitos se encontra a terceira razão das minhas altas expectativas em relação ao filme, que é o fato de ser uma animação em stop-motion, uma das técnicas mais complicadas e artísticas de animação, que ainda se mantém relevante no mercado graças ao trabalho de empresas como a Laika (“Coraline”, “ParaNorman”) e a Aardman (“A Fuga das Galinhas” e “Wallace e Gromit”). No caso, “Pinóquio por Guillermo del Toro” marca duas estreias para o diretor: é a sua estreia na direção de longas-metragens animados e na direção de filmes musicais. Sim, assim como a versão da Disney, a de del Toro também é musical, mas vamos falar disso mais para frente. Como a última razão das minhas altas expectativas, a escolha da ambientação na Itália fascista de Mussolini acaba revisitando temas de guerra quase onipresentes na obra do cineasta, fazendo a adaptação se destacar em meio às inúmeras outras versões cinematográficas do conto de Collodi.

Então, sim, eu estava tremendamente animado para assistir à versão de “Pinóquio” dirigida por Guillermo del Toro. E fico extremamente feliz em dizer que o filme não só atendeu como superou as minhas expectativas, sendo o melhor filme de 2022 e o concorrente principal ao Oscar de Melhor Filme de Animação ano que vem. Há cinco razões as quais atribuo a enorme conexão do roteiro de del Toro e Patrick McHale com o espectador: a ambientação, que acaba ligando os temas da narrativa com filmes anteriores do diretor; as alternativas realistas para os aspectos mais fantásticos da história de Collodi; o arco narrativo do protagonista; o equilíbrio perfeito entre a leveza e o caráter mais sombrio da trama; e as temáticas abordadas pelos roteiristas, que despertam uma reflexão sobre a vida, a morte, e o impacto que as pessoas podem ter em nossas vidas.

A escolha da ambientação na Itália fascista de Mussolini faz com que “Pinóquio por Guillermo del Toro” seja o último capítulo de uma trilogia informal de filmes do diretor: obras que abordam o contexto da guerra pelo ponto de vista de crianças, composta pelo menos conhecido, mas incrivelmente poético “A Espinha do Diabo”; a obra-prima atemporal que é “O Labirinto do Fauno”; e, por fim, esta adaptação do trabalho de Carlo Collodi, que é, sem sombra de dúvida, o trabalho mais fantástico e envolvente de del Toro desde o segundo filme desta “trilogia”. Como o cineasta já tem uma certa familiaridade com esse tema, o roteiro aproveita para fazer de “Pinóquio” um filme anti-guerra, à la “Nada de Novo no Front” e “Jojo Rabbit”, tendo como um de seus principais antagonistas um membro da Podestà, um líder autoritário com plenos poderes executivos e legislativos, cargo político de enorme prestígio na Itália de Mussolini.

Outro diferencial que del Toro e McHale injetam nesta adaptação é o realismo, imposto pela ambientação específica da narrativa. Personagens que marcaram a história original e suas diversas versões cinematográficas, como a Fada Azul, a Raposa e o Gato, o Mangiafuoco (dono do circo itinerante) e o Cocheiro (que, na versão da Disney, é uma figura demoníaca) são completamente remodelados para servirem à ambientação de uma maneira mais verossímil. Há uma presença fascinante de um realismo mágico na trama, reminiscente ao trabalho impecável de Hayao Miyazaki, responsável por filmes como “Meu Amigo Totoro” e “A Viagem de Chihiro”, que usam seus aspectos mais fantásticos para desenvolverem seus personagens de uma forma realista. O próprio Pinóquio é mais um exemplo deste realismo: ao invés de ser um boneco extremamente bem acabado como na versão da Disney, temos aqui um boneco incompleto, feito a partir de uma raiva bêbada, finalizado com pregos tortos e rachaduras visíveis na madeira. O Pinóquio de del Toro, visualmente, é mais parecido com o monstro de Frankenstein do que com qualquer outra coisa.

Em terceiro lugar, temos o arco narrativo do protagonista, e na adaptação de del Toro e McHale, temos uma troca de papéis surpreendente: ao invés de seguir o que já foi feito em versões anteriores e abordar a jornada do personagem-título para se tornar um garoto de verdade, este “Pinóquio” mira seus holofotes em Gepeto e na trajetória do idoso para aceitar Pinóquio como filho, mesmo com suas imperfeições. É uma troca que faz toda a diferença na adaptação, porque ao mesmo tempo que nós aprendemos mais sobre a história do carpinteiro antes de criar o boneco, temos a interpretação da narrativa a partir da ideologia da “raça superior” na época da Segunda Guerra Mundial, levando a massacres como o Holocausto. Nesse ponto de vista, Pinóquio seria a personificação de todas as pessoas injustiçadas por essas tragédias; assim como a personificação da desobediência e da resistência em uma época em que ideologias absurdas eram cegamente apoiadas pela população dos países pertencentes ao Eixo, em especial a Alemanha. É brilhante a maneira com que del Toro faz com que um boneco de madeira seja mais humano do que todos os personagens humanos da trama.

Em quarto lugar, temos o equilíbrio perfeito entre a leveza e o caráter mais sombrio do roteiro. Nisso, “Pinóquio por Guillermo del Toro” me lembrou (e muito) de “Jojo Rabbit”, sátira anti-guerra dirigida por Taika Waititi, que venceu o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2020. Porque, ao mesmo tempo que a leveza faz o filme ser mais acessível para um público mais jovem, esses choques sombrios de realidade colaboram para um retrato mais fiel da ambientação. Há dois fatores que garantem a leveza do roteiro de del Toro e McHale: as canções originais compostas pela dupla em parceria com Roeban Katz, que conseguem desenvolver emocionalmente os personagens com perfeição; e o senso de humor, que encanta as crianças ao mesmo tempo que diverte os adultos. Já pelo lado mais sombrio, há uma aura de melancolia e tragédia muito forte perpassando a trama, justamente pelo impacto chocante que a ambientação teve na história da humanidade. Fascistas organizavam acampamentos de treinamento para que crianças fossem capazes de ir à guerra, inúmeras pessoas perderam seus familiares e pessoas queridas devido ao conflito. É algo difícil de retratar, mas, felizmente, del Toro e McHale conseguem encontrar um meio-termo entre a leveza e o realismo: é realista, mas não a ponto de ser deprimente; e é leve, mas não a ponto de ser infantilizado.

E, em quinto e último lugar, nós temos as temáticas abordadas na narrativa, e aqui temos mais uma mudança em relação ao original: ao invés da trama ser um estudo da moralidade do ser humano a partir do Pinóquio, a versão de del Toro é uma meditação sobre a brevidade da vida e o impacto que a morte de pessoas queridas pode ter nas nossas vidas, e por isso, precisamos aproveitar e valorizar cada momento que passamos com essas pessoas. Isso é simbolizado de forma perfeita através do arco narrativo do Gepeto. Ele perde seu filho e, como consequência, recorre ao alcoolismo para afogar as mágoas. Quando Pinóquio surge em sua vida, inicialmente Gepeto o afasta, assim como toda a população da cidade em que vivem. Mas com o tempo, o carpinteiro vai percebendo o quanto o boneco havia mudado sua vida e começa a reavaliar suas decisões. É algo tão lindo que desperta uma vontade no espectador de ligar pra todas as suas pessoas mais queridas só pra dizer “Eu te amo”, quando os créditos começarem a rolar. Inclusive, é essa conexão emocional com o espectador que pode fazer com que “Pinóquio por Guillermo del Toro” vá além das categorias óbvias no Oscar e tenha a oportunidade de ser o primeiro filme animado que não é da Disney a ser indicado ao Oscar de Melhor Filme. E, felizmente, a Netflix também acredita nisso.

(Okay, let's start things off with a fact: “Guillermo del Toro's Pinocchio” was my most anticipated film of 2022. Firstly, simply because it was a film directed by Guillermo del Toro, one of my favorite filmmakers and the one responsible for Oscar-winning films like “Pan's Labyrinth” and “The Shape of Water”. Secondly, because it was the director's passion project, meaning he's been wanting to make this project for a very long time, as it would be a dream come true for him to get this made. It took a total of 15 years for “Pinocchio” to get made, after a failed attempt in 2008 to move it from the paper and into animation, shelving it indefinitely. But, thanks to the director's successful partnership with Netflix, the streaming giant brought the project back to life in 2018, within ground rules imposed by del Toro.

Among those ground rules is the third reason for my high expectations towards the film, which is the fact that it is a stop-motion animated film, one of the most complicated, artistic forms of animation, which is still as relevant in the market thanks to the works of studios like Laika (“Coraline”, “ParaNorman”) and Aardman (“Chicken Run”, “Wallace and Gromit”). In this case, “Guillermo del Toro's Pinocchio” marks two debuts for the director: it's his first time directing feature-length animation, as well as his first time directing movie musicals. Yes, just like the Disney version, del Toro's is also a musical one, but we'll get to that later on. As the last reason for my high expectations, the choice of setting in Mussolini's fascist Italy ends up revisiting war themes that are almost omnipresent in the director's body of work, making the adaptation stand out among numerous other cinematic versions of Collodi's tale.

So, yes, I was tremendously excited to watch Guillermo del Toro's version of “Pinocchio”. And I am extremely glad to say that the film not only met but exceeded my expectations, being the best film of 2022 and the main contender for next year's Oscar for Best Animated Feature. There are five reasons to which I attribute the enormous connection between del Toro and Patrick McHale's script and the viewer: the setting, which ends up linking it to the director's previous films; the realistic alternatives for the most fantastical aspects of Collodi's story; the protagonist's narrative arc; the perfect balance between the plot's lightness and darker tone; and the themes approached by the writers, which jumpstart a reflection on life, death, and the impact people may have in our lives.

The choice of setting the story in Mussolini's fascist Italy makes “Guillermo del Toro's Pinocchio” the final chapter in an informal trilogy of the director's films: works that analyze the context of war through the perspectives of children, a series composed by the lesser-known, but incredibly poetic “The Devil's Backbone”; the timeless masterpiece that is “Pan's Labyrinth”; and, lastly, this adaptation of Carlo Collodi's work, which is, without a shadow of a doubt, del Toro's most fantastic and involving work since the second film in this “trilogy”. As the filmmaker is already familiar with this theme, the screenplay takes a chance and turns “Pinocchio” an anti-war film, in the likes of “All Quiet on the Western Front” and “Jojo Rabbit”, with one of its main antagonists being a member of the Podestà, an authoritarian leader with full executive and legislative powers, a political position of high prestige in Mussolini's Italy.

Another difference del Toro and McHale inject into this adaptation is its realism, imposed by the narrative's specific setting. Known characters from the original story and its various cinematic interpretations, such as the Blue Fairy, the Fox and the Cat, Mangiafuoco (who owns the traveling circus) and the Coachman (who, in the Disney version, is a demonic figure) are completely remodeled in order to serve the setting in a more believable way. There's a fascinating presence of magical realism in the plot, reminiscent to the works of Hayao Miyazaki, who made animated films like “My Neighbor Totoro” and “Spirited Away”, which used its more fantastical aspects to develop their characters in a realistic manner. Pinocchio himself is another example of that realism: instead of being an extremely well-polished doll, like in the Disney version; we have here an unfinished puppet, built from a drunken rage, finished with crooked nails and cracks in the pine wood. Del Toro's Pinocchio, visually, is more akin to Frankenstein's monster than anything else.

Thirdly, we have the protagonist's narrative arc, and in del Toro and McHale's adaptation, there's a surprising shift of roles: instead of following what's been done and approaching the title character's journey towards becoming a real boy, this “Pinocchio” directs its spotlights towards Geppetto and in the elder's trajectory into accepting Pinocchio as his son, even with all his imperfections. It's a trade that makes an entire difference in the adaptation, because at the same time we learn more about the woodcarver's life prior to making the puppet, we have the narrative's interpretation using the “master race” ideology that spread during WWII, leading up to massacres like the Holocaust. In that point of view, Pinocchio would be the personification of every person that was wronged by these tragedies, as well as the personification of disobedience and resistance in a time where absurd ideologies were blindly supported by the populations of the Axis countries, especially Germany. It's brilliant how del Toro makes a wooden puppet be more human than all of the human characters in the story.

In fourth place, we have the script's perfect balance between its lightness and its darker tone. In that, “Guillermo del Toro's Pinocchio” reminded me (a lot) of “Jojo Rabbit”, Taika Waititi's anti-war satire, which won the Oscar for Best Adapted Screenplay in 2020. Because, at the same time the film's lightness makes it more accessible to a younger audience, these dark shocks of reality collaborate to a more faithful portrayal of its setting. There are two factors that guarantee the lightness in del Toro and McHale's script: the original songs penned by the duo along with Roeban Katz, which perfectly manage to emotionally develop its characters; and its sense of humor, which enchants the little ones and entertains the older ones. On the darker side, there's a really strong aura of melancholy and tragedy circling around the plot, especially because of the impact the setting had on the history of mankind. Fascists organized training camps for children so that they could be able to go to war, numerous people lost their families and loved ones throughout the conflict. It's something tough to portray, but, fortunately, del Toro and McHale manage to meet the lightness and the realism halfway: it's realistic, but not to the point of being devastating; and it's light, but not to the point of being dumbed down to its audience.

And, in fifth and last place, we have the themes approached in the narrative, and here we find yet another difference in comparison with the original: instead of the plot being a study of the human being's morality from Pinocchio, del Toro's version is a meditation on the briefness of life and the impact that the death of our loved ones can have in our lives, and so, we have to cherish and value every single moment we spend with these people. That's perfectly symbolized through Geppetto's narrative arc. He loses his son and, as a consequence, he turns to alcoholism to drink his sorrows away. When Pinocchio appears in his life, at first Geppetto keeps his distance, as do their town's entire population. But with time, the woodcarver notices how much the puppet had changed his life and starts reviewing his decisions. It's something so beautiful that it triggers the viewer's will to call every single loved one in their life only to say “I love you”, when the credits start rolling. As a matter of fact, it's because of that emotional connection with the viewer that might make “Guillermo del Toro's Pinocchio” rise above the obvious Oscar categories and earn the opportunity of being the first non-Disney animated film to be nominated for the Oscar for Best Picture. And, fortunately, Netflix believes in that, too.)



A caracterização é outro destaque de “Pinóquio por Guillermo del Toro”. Os três personagens principais da trama (Pinóquio, Gepeto e o Grilo Falante) são introduzidos da melhor maneira possível. O Grilo é o nosso narrador onisciente, e é incrível como del Toro faz ele ser um personagem mais importante para o Gepeto do que para o Pinóquio, movimentando o arco narrativo do carpinteiro de uma maneira primorosa. Os primeiros 10 minutos de filme são estritamente usados para desenvolver o personagem do Gepeto, algo que faz falta em adaptações anteriores. E a primeira aparição do Pinóquio com vida no filme é algo tão característico do diretor que você não imagina mais ninguém fazendo essa história melhor do que ele. A inocência do boneco é a antítese perfeita para a dureza e a experiência do Gepeto, e o ingrediente ideal para esculpir a compaixão a partir dessa dureza. É impossível não se apaixonar pelo personagem-título, assim como é impossível não sentir compaixão pela trajetória do Gepeto.

Os vilões remodelados por del Toro colocam os vilões do remake live-action da Disney no chinelo, especialmente por serem tão realistas. Há dois níveis de crueldade nos vilões, e ambos são incrivelmente verossímeis: há um nível que equilibra um pouco de carisma exagerado com a malícia do personagem, exemplificado pelo Conde Volpe; e há um nível onde uma aura de ameaça extremamente real rodeia o personagem, onde o espectador não sente nada pelo personagem além de puro medo, como é o caso do membro da Podestà, que me lembrou o Capitão Vidal de “O Labirinto do Fauno”. Há alguns personagens originais que, ao contrário do remake da Disney, conseguem adicionar (e muito) à trama, contendo até algumas características que seriam redentoras para suas versões originais na história de Carlo Collodi.

E o que falar do elenco de vozes original? O estreante Gregory Mann consegue transmitir perfeitamente toda a inocência, a ingenuidade e a curiosidade do personagem-título com uma quantidade impressionante de energia na voz. O veterano David Bradley (o Filch de “Harry Potter”) interpreta o Gepeto como uma pessoa cuidadosa e gentil, mas ao mesmo tempo, melancólica e emocionalmente danificada. O Ewan McGregor tem uma voz tão maravilhosa que o espectador mal pode esperar pela próxima aparição do Grilo Falante. O departamento de elenco acertou em cheio ao escalar o Christoph Waltz como o Conde Volpe, porque ninguém consegue equilibrar carisma com ameaça tão perfeitamente como ele. (Quem já viu “Bastardos Inglórios”, sabe do que estou falando.) A Tilda Swinton fica responsável por duas personagens que encaixam muito bem no perfil camaleônico da atriz. O Finn Wolfhard interpreta o melhor personagem coadjuvante do filme, pelas semelhanças que seu arco tem com o do personagem-título. O oficial da Podestà é interpretado de forma brilhante pelo Ron Perlman, que consegue canalizar muito bem a performance do Michael Shannon em “A Forma da Água”. E por fim, a Cate Blanchett interpreta um macaco, e acaba sendo um dos melhores personagens do filme. Sim, você leu isso certo.

(The characterization is yet another highlight in “Guillermo del Toro's Pinocchio”. The three main characters in the plot (Pinocchio, Geppetto, and the Talking Cricket) are introduced in the best way possible. The Cricket is our omniscient narrator, and it's incredible how del Toro makes him a much more important character for Geppetto rather than Pinocchio, moving the woodcarver's narrative arc beautifully. The film's first 10 minutes are strictly used to develop the character of Geppetto, something that's been missing from previous adaptations. And Pinocchio's first appearance while alive in the movie is something so much like something del Toro would do, you just can't imagine anyone else directing this story better than him. The puppet's innocence is the perfect antithesis for Geppetto's roughness and experience, as well as the ideal ingredient to sculp out compassion from that rough spot. It's impossible not to fall in love with the title character, in the same way it's impossible not to feel compassionate towards Geppetto's trajectory.

Del Toro's reimagined villains put the Disney live-action remake ones in the dirt, especially for how realistic they feel. There are two levels of cruelty to these villains, and both of them are incredibly believable: there's a balance between a character's over-the-top charisma and their malice, exemplified by Count Volpe; and there's a level of threat where an aura of extremely real menace circles around the character, making the viewer feel nothing but pure fear towards them, as it happens with the Podestà official, which reminded me a lot of Captain Vidal from “Pan's Labyrinth”. There are some original characters here that, unlike Disney, manage to add (a lot) to the plot, even containing some redemptive qualities for their original versions in Carlo Collodi's tale.

And what to say about the voice cast? Newcomer Gregory Mann manages to perfectly convey the title character's innocence, naïveté and curiosity with an impressive amount of energy in his voice. Legendary actor David Bradley (Filch from “Harry Potter”) portrays Geppetto as a careful and kind, and yet, melancholic and emotionally damaged person. Ewan McGregor has such a wonderful voice the viewer can't wait for the Talking Cricket's next appearance. The casting department nailed it when casting Christoph Waltz to play Count Volpe, as no one can balance charisma with threat as flawlessly as him. (Those who've seen “Inglourious Basterds” know what I mean.) Tilda Swinton takes on two characters that seamlessly fit into the actress's chameleon-like profile. Finn Wolfhard plays the best supporting character in the plot, because of his arc's resemblances to Pinocchio's. The Podestà official is brilliantly played by Ron Perlman, who effectively channels Michael Shannon's performance in “The Shape of Water” here. And, finally, Cate Blanchett plays a monkey, and ends up as one of the film's best characters. Yes, you heard that right.)



Eu poderia escrever uns dez parágrafos dizendo o quão incrível o trabalho de animação em stop-motion de “Pinóquio por Guillermo del Toro” é, mas vou me conter, dizendo que é provavelmente um dos trabalhos mais belos e artísticos que eu já vi em um filme de animação. Os cenários são fenomenais, o uso bem calculado de CGI complementa o caráter artesanal do stop-motion, fazendo o último parecer ainda mais ambicioso. O nível de detalhes presente na animação é uma obra-prima à parte. A sujeira em volta das unhas do Gepeto; os calos nos dedos dele; o formato ondulado de sua barba, parecida com a de uma nuvem; a performance corporal completa do Grilo Falante em cada cena em que ele aparece; o topete quase demoníaco do Conde Volpe; os padrões de uma pinha presentes em várias cenas do filme... É tanta coisa que eu teria que ver de novo para perceber tudo. (Risos) E, à propósito, eu não descarto possíveis indicações nas categorias técnicas no Oscar, especialmente Melhor Direção de Arte e Efeitos Visuais.

Um detalhe interessante é a escolha de del Toro e sua equipe de animar os erros de seus personagens. Em stop-motion, estamos acostumados a ver tudo tão perfeitinho, que a não-animação dos erros dos personagens tira um pouco do realismo do que está sendo retratado. Se baseando na máxima de Hayao Miyazaki (“Se você animar o ordinário, o resultado será extraordinário.”), há vários momentos que destacam a humanidade e a falibilidade destes personagens. Por exemplo, em uma cena, o Gepeto esbarra em um balão flutuante, e aí, o balão vai se enroscando nele até que, enfim, o idoso consegue se soltar. Além disso, temos outros exemplos: o leve limpar de uma moeda com a mão antes de pegá-la do chão; uma tentativa falha de alcançar um lugar alto, levando à uma segunda tentativa... Nesse aspecto, recomendo fortemente que assistam o mini-documentário (também disponível na Netflix) “Pinóquio por Guillermo del Toro: Cinema Feito à Mão” após o longa, só para vocês terem uma ideia do esforço que levou para fazer esse filme.

E, por fim, temos a trilha sonora, composta pelas faixas instrumentais do inigualável Alexandre Desplat, em sua segunda colaboração com o diretor (após “A Forma da Água”, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original), e pelas canções originais compostas por Desplat, del Toro, Patrick McHale e Roeban Katz. Ambos os tipos de música têm como objetivo principal desviar o foco de uma vibe mais sombria e investir em momentos mais lúdicos, reflexivos, que podem falar mais sobre os personagens. Eu dou um destaque especial para “Ciao Papa”, a música que a Netflix submeteu para concorrer ao Oscar de Melhor Canção Original, por ser parte de um momento onde os dois personagens principais têm plena certeza do que querem. Uma curiosidade que achei bem interessante é que Desplat utilizou somente instrumentos de madeira para a trilha de “Pinóquio”, como violinos, flautas, violoncelos, guitarras acústicas. É algo feito com bastante cuidado e compromisso, e isso pode significar uma provável indicação ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original.

(I could write about ten paragraphs on how amazing the stop-motion animation work is in “Guillermo del Toro's Pinocchio”, but I'll contain myself, stating that it's probably one of the most beautiful and artistic works I've ever seen in an animated film. The sets are simply phenomenal, the well calculated use of CGI compliments the handmade vibe of stop-motion, making the latter feel even more ambitious. The level of detail in the animation is a particular masterpiece. The dirt around Geppetto's fingernails; the calluses in his fingers; the wave-like shape of his beard, akin to a cloud; the Talking Cricket's full body performance in every scene he's in; Count Volpe's almost demonic hairdo; the patterns of a pinecone in several of the movie's scenes... It's so much stuff I'd had to watch it again just to get a sense of it all... (LOL) And, by the way, I'm not discarding possible technical nominations at the Oscars, especially when it comes to Best Production Design and Best Visual Effects.

An interesting detail is del Toro and his team's choice of animating their characters' mistakes. In stop-motion, we're used to seeing everything so pitch-perfect, that the lack of animating the characters' mistakes takes a little bit of realism out of what's being portrayed. Based off Hayao Miyazaki's legendary quote (If you animate the ordinary, it'll become extraordinary.), there are several moments that highlight the characters' humanity and falibility. For an example, there's a scene where Geppetto bumps into a floating balloon, and then it tangles up with him, until he finally manages to set himself free. Besides, we have other examples: the light cleaning of a coin with a hand before picking it up from the ground; a failed attempt to reach a high place, followed by another attempt... In that note, I strongly recommend watching the short documentary (which is also on Netflix) “Guillermo del Toro's Pinocchio: Handcarved Cinema” after the film, just so you can get an idea of the effort that went into making this film.

And, finally, we have the score, composed by instrumental tracks from the one and only Alexandre Desplat, in his second collaboration with the director (after “The Shape of Water”, which won him the Oscar for Best Original Score), and by the original songs composed by Desplat, del Toro, Patrick McHale and Roeban Katz. Both types of music have as their main objective to put the spotlight away from the grim of it all, offering more playful, thought-provoking moments that may say a lot about the characters. I give a special highlight to “Ciao Papa”, the song Netflix submitted as a possible contender for Best Original Song at the Oscars, as it is part of a moment when the two main characters are plainly sure of what they want. A curiosity I found to be quite interesting is that Desplat used only instruments made out of wood for the “Pinocchio” score, like violins, flutes, cellos, acoustic guitars. It's something done with a lot of care and commitment, which might mean a likely nomination for the Oscar for Best Original Score.)



Resumindo, “Pinóquio por Guillermo del Toro” é uma brilhante releitura da história de Carlo Collodi que resgata os temas principais da narrativa, ao mesmo tempo que retém os fatores característicos de um filme de Guillermo del Toro. Auxiliado por um roteiro inteligente, reflexivo e realista; um elenco de vozes tremendamente talentoso; e um dos trabalhos mais belos de animação em stop-motion dos últimos tempos, o cineasta mexicano vencedor de 2 Oscars consegue realizar seu sonho através do que é, na minha opinião, o melhor filme de 2022 e o principal concorrente ao Oscar de Melhor Filme de Animação ano que vem. Não fiquem surpresos se este filme aparecer em outras categorias no Oscar, porque querendo ou não, del Toro e sua equipe merecem tudo aquilo que está por vir.

Nota: 10 de 10!!

É isso, pessoal! Espero que tenham gostado! Até a próxima,

João Pedro

(In a nutshell, “Guillermo del Toro's Pinocchio” is a brilliant retelling of Carlo Collodi's story that brings back the narrative's main themes, at the same time it retains the characteristic factors of a Guillermo del Toro film. Aided by a clever, thought-provoking and realistic screenplay; a tremendously talented voice cast; and one of the most beautiful works in stop-motion animation in recent times, the two-time Oscar-winning Mexican filmmaker manages to make his dream come true through what is, in my opinion, the best film of 2022 and the main contender to next year's Oscar for Best Animated Feature. Don't be surprised if this film pops up in other Oscar categories, because let's face it, del Toro and his team deserve everything that's coming to them.

I give it a 10 out of 10!!

That's it, guys! I hope you liked it! See you next time,

João Pedro)


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